Rastros e pistas

Intato e ordinário. Nada fora do lugar, mas distante do que a realidade conjurava harmonia em seu simples, porém inquebrável funcionamento. Os recentes dias não carregavam amargura, arrependimento ou até mesmo estranheza nas coisas mais sutis que denunciariam que por trás deste disfarce, algo era edificado pelos segredos de um crime perfeito. Foi instantâneo, espontâneo, uma imprevisibilidade fora de qualquer comum, um evento sem causa ou consciência para o inevitável peso das consequências que viriam desta súbita irracionalidade.

Detetives, policiais, relativos e curiosos se perdiam em suas próprias perguntas. Lembraram-se primeiramente do nome, depois o rosto, em seguida a maneira em que se portava, falava, amava, brincava e seguia aos passos de suas particulares impossibilidades erguidas em altos pedestais de fé. Lamentos reuniam mais maneiras de recordar: “Era tão jovem, era tão sabido, era tão contente, era tão tímido, era tão recluso, era, era, era, era, era tão...”. Era uma incompleta memória que vagava em irrelevância, um familiar ponto de interrogação desprovido de questão que o acompanhasse (caso o contrário, não haveria uma resposta).

Nenhum grande plano, nenhum esforço para esconder o fato de que fora ele a vítima e o culpado de si. Não há necessidade de vasculhar cada canto do mundo, onde ele está é um esconderijo inexplorado e impensável. O sequestrador e o sequestrado compartilham as duas metades da mesma identidade. É uma fuga incessante das coisas que o confirmam como temporário, uma escapada decidida pelos instintos de sobrevivência, que, assim como seus sóbrios sentidos, já perderam a capacidade de manter o controle em cada situação do agora.

Rastros e pistas desconexas firmam a incerteza sobre qualquer conclusão. Desapareceu assim como vivia: invisível. Fragmentos de lembranças sobraram como a prova de que, em um determinado momento, sua presença era palpável e concreta numa maneira inimaginável e utópica, distanciada a ser inalcançável pelo realismo. Mistério constante e indecifrável se alastra às dúvidas que não encontram soluções. Seus cartazes de descrição de vaga, recompensa barata, foto de anos atrás estão espalhados pelos muros abandonados da cidade, mas este reflexo do passado é apenas uma das coisas que torna impossível a tarefa de encontra-lo.

Talvez em segurança, talvez vivendo num diário medo incessante pelas decisões feitas. Ele não é mais a criança que pensaria infinitas vezes antes de fazer isso consigo mesmo. Não mais o tipo de pessoa que seria facilmente reconhecida pela aparência e pelas usuais formas de agir. Transformou-se num fugitivo de tudo o que construiu, desamparando-se de salvação, escondendo-se por trás das palavras que escreve nos parágrafos de si.

Daniel Yukon
Enviado por Daniel Yukon em 16/10/2019
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