O velocípede do meu pai
Rosângela Trajano
O tempo passa rápido, e quando a gente vai dar conta das coisas que estão ao nosso redor elas parecem ter encontrado a maturidade. Recordo-me, com saudades, das conversas com papai. Não sei quem era mais criança de nós dois, eu ou ele. Bem, eu quando fazia algo errado me escondia embaixo da cama; ele se metia embaixo dos lençóis. Era tudo tão belo! Papai era um homem de lembranças, que guardava tudo no sótão da nossa casa. Ele tinha um baú de madeira, que já não fechava mais de tão cheio. Eu sorria quando ele se trancava no escritório nos fins de semana para fazer limpeza nas suas gavetas, e acabava não jogando nada no lixo; sem contar nas vezes que ele perdia a chave no meio da papelada e precisava pular a janela.
Até que um dia eu visitei o sótão, e não suportei a curiosidade de vasculhar aquele baú tão amado por papai. Ah, se ele me pega ali! Se papai tinha a sua mania de guardar tudo que lhe trouxesse uma lembrança, eu tinha a mania de perder as minhas coisas. Mas isso é apenas um comentário. Na verdade, naquela tarde descobri no baú de papai o seu maior tesouro, um velocípede, que registrava os seus momentos de infância. Ao ver aquele brinquedo fiquei imaginando o papai correndo de um lado para o outro da casa, sentado sobre aquelas três rodas, com os seus quase dois metros de altura. Eu sorri, e senti uma lágrima banhar o meu rosto. Descobri o porquê de papai passar tanto tempo no sótão, esquecendo muitas vezes a hora do jantar.
O velocípede contava a história da vida de um homem que jamais deixará de ser criança. De um pai amigo, carinhoso e de um coração gigante por natureza. Papai brincava conosco e se aventurava a subir em árvores e caçar vaga-lumes. O único defeito que as pessoas grandes comentavam sobre o papai era o fato dele não guardar mágoas e perdoar todos os que lhe passavam a perna nos negócios. Não pensem que meu pai era um tolo, e nem sorriam dele, eu os peço. O meu pai era um homem sábio. Ele costumava dizer que o perder com dignidade é o saber ganhar com dedicação. Papai tinha uma alma de criança, por isso não se prendia ao trabalho.
Hoje, papai continua a visitar o sótão. Mas eu cresci e precisei buscar novos caminhos. Talvez ele esteja lá, agora, a brincar com o seu velocípede. Segui os conselhos de papai, só não pude evitar que o destino nos separasse. Aprendi a não perder as minhas coisas, mas esqueci de guardar a minha boneca de pano que me acompanhou durante toda a infância e a juventude, minha ouvinte e companheira. Da boneca de pano ao velocípede de papai, aprendi que tornar-se adulto é saber que nunca deixaremos de ser criança.