Casa de Copa
Era a primeira Copa do Mundo na casa nova. Era também a primeira em que eu, com nove anos, já sabia como me portar numa Copa. A anterior, de 1994, já tinha me dado amostras de que era algo sério e que permitia excessos, porque minha tia, com “várias” na cabeça, correu para cama e chorou de nervoso quando o Brasil foi para os pênaltis contra a Itália. Na minha memória, ela chegou até a desfalecer no quarto. Mas, pensando hoje, como adulto, acho que era muito para a ocasião.
Aquela nova casa era a ideal para a Copa de 1998: ficava no entorno - acoplada mesmo - de um estádio, de modo que sua parede era a parede do estádio. Podia dizer que eu tinha um estádio no meu quintal! Aliás, mais do que isso, tínhamos um camarote, posto que assistíamos aos jogos do Estádio Benedito Pereira do terraço de casa. Aos sábados e domingos, ensolarados, nublados ou chuvosos, estávamos - eu e minha família - no terraço assistindo aos jogos que aconteciam das 7:00 às 18:00. Se era final de campeonato com a participação do time da casa, o 138 Unidos da Vale, tome churrasco no terraço!
Naquele lugar, aprendi a ser um torcedor enjoado, crítico com os jogadores que subiam pela lateral próxima ao nosso terraço e não voltavam para marcar. Comecei a farejar o risco de tomar gol quando o lateral da nossa casa cruzava a bola na frente da sua área. Naquele ano, quando entrei para uma escolinha de futebol de campo, por muitos traumas causados no alheio, já sabia o que eu não queria ser: lateral.
Aprendi a falar os maiores impropérios contra os juízes e os times adversários. Naquela nossa casa, aprendi que, em futebol, torcedor não quer saber se tem razão: quer mesmo é xingar em qualquer oportunidade quem não está ali - o patrão que amofina, a mulher que sacaneia, o agiota que ameaça. E tome palavrão! Aprendi a ser um torcedor. Já estava com o vocabulário preparado para a competição mundial.
Nas semanas que antecederam o evento, os preparativos para o torneio atingiram seu ponto alto: a decoração das ruas utilizando bandeirinhas e as pinturas nas vias e nos muros dos terrenos baldios. Alguns torcedores, mais apaixonados, até faziam das fachadas de suas casas verdadeiras obras de arte verde-amarela. Foi assim, nos preparativos para a copa, que eu descobri que França, país sede, também era France, e que a bola oficial era muito mais sisuda que aquela colorida que a gente brincava, que possuía em seus gomos as bandeiras de todos os países participantes. France, bola oficial, galo azul e vermelho de sorriso cínico, bandeiras do Brasil, surgiam nos muros e ruas da cidade.
Apesar da minha casa ser a casa da copa de 1998, a rua não estava preparada. A via pavimentada com paralelepípedos, assim como a pronúncia da palavra, não permitia qualquer arte contínua. Restava somente, pausadamente, pintar cada paralelepípedo, ora de verde, ora de amarelo, ora de verde, ora de amarelo, até chegar na minha calçada. A partir desta, minha criatividade obteve liberdade para pintar as cores do país conforme eu quisesse. Não lembro exatamente o mosaico que fiz com o verde-amarelo, mas até hoje lembro da textura escorregadia da tinta na calçada que, após a frustração da final, demorou anos para se apagar, mais precisamente, quatro anos.
Após pintar a calçada com tamanha liberdade, apaixonado que eu estava, certo de que não existia nenhum craque além de Ronaldinho e Romário que pudesse tomar nosso título, decidi pintar a fachada da nossa casa de copa. Naquela época, a copa do mundo nos dava tanta certeza de vitória, que à exemplo dos colegas da escola que se gabavam de suas casas de campo, casas de praia, sítios, fazendas, eu estava determinado a ter a minha casa de copa. E assim procedi.
A fachada da casa era forrada com pedra miracema almofadada, como se fazia antigamente, tal como os paralelepípedos da rua. O verde-amarelo que começou na rua, subiu a calçada e chegava agora na minha casa. Nada poderia me deter.
Para meu espanto, na primeira demão, na pedra mais alta da fachada, logo uma pessoa chamou minha atenção de forma desesperada: - Menino, seu pai e sua mãe deixaram você fazer isto????. Tranquilamente, disse que não sabiam, o que também não era problema, afinal, durante os anos anteriores quebrei todos os lustres da casa chutando bola, fui repreendido, mas, como não me proibiram de jogar bola, achei que fosse somente uma espécie de cartão amarelo. O alerta, para mim, seria só para lembrar que o que não podiam ser quebrados eram os vasos e tampouco decepar as plantas com os chutes fortes que eu dava.
O espanto da pessoa não se contentou com a reposta. Chamou a moça que cuidava de mim e de minha irmã. Ligeira, ela chegou com as mãos na cabeça, para interromper a arte: - Lucian, sua praga, a dona da casa mata seu pai lá do estrangeiro e seu pai me fuzila aqui!!! Sem entender, parei mais pelo palavrão da cuidadora dirigido a um compatriota que por estar convencido ser inadequado pintar a fachada da casa de copa.
Naquele ano, perdemos, o Brasil e eu, para as verdadeiras donas da casa. Desde então, fiquei alerta. O sentimento infantil verde-amarelo que pintam nas ruas poderia até subir minhas calçadas, mas teria um limite: a propriedade privada.