SETENTA E CINCO ANOS

Três quartos de século já se foram,

Desde aquela manhã, diluviana,

Na casa da Rua Cosme Viana,

Quando nove meses se completaram,

Desde a concepção intrauterina.

Daquele local cercado por campina,

Bem pouca lembrança me resta,

Pois só lá ia em dias de festa,

Comemorar com parentes os nascimentos.

Minha vida transcorreu sem sofrimentos,

Amado por todos em minha volta,

Fui adolescente sem sentir a revolta,

Característica dos quase adultos atuais.

Infância povoada pelos vultos,

Fantasmas das histórias que contavam,

De autores consagrados internacionais,

Também hilariantes histórias familiares

De antigas peripécias ancestrais.

Herdei desses antigos parentes,

O respeito por todos os viventes,

Vibrando quando o vilão se dava mal,

Castigo que hoje já não é mais natural,

Quando vemos bandido idolatrado,

E o povo tratado como gado,

Na desesperança da vida sempre igual.

Tive as doenças comuns dos antigos anos,

Onde vacina não era coisa para humanos.

Brinquei na rua, me socializei,

Joguei pedras, mas nem sempre acertei,

Pois que o alvo escolhido era incerto.

Mas vi crescer bem de perto,

Os amigos dos quais ainda lembro,

Principalmente nas festas de dezembro,

Quando toda amizade se refaz.

Festa da Conceição, Natal e Ano Novo,

Eu no meio daquele povo,

Não era só mais um, eu era tudo

Pois nunca fui de ficar mudo,

Quando a ordem era comemorar

E as cantigas enchiam o lugar.

Dancei nas festas e bailinhos,

Com as garotas de vestidos bonitinhos,

Naqueles modelos que não se usam mais.

Brincadeiras de rua não faltaram,

Nem os castigos, à época, normais.

Os boletins de fim de ano, alegremente

Eram troféus do saber, incipiente

Que até hoje ajuda a compreender,

Que o filósofo teve toda razão,

Quando chegou à óbvia conclusão,

Que “só sei que nada sei”

Mas, “se penso, logo existo”

Procurei da existência a melhor parte,

Mesmo com pouco “engenho e arte”,

Insisti, insistirei e insisto,

Em ver da vida o lado mais bonito,

Pois da beleza não há quem se farte.

Com minha modesta e obscura colaboração,

Tenho duas filhas inteligentes,

Que de repente, numa pressa absoluta,

Saíram dos meus braços para a vida adulta.

Nada no mundo se iguala a emoção,

Nem nas muitas galáxias ou planetas,

O fato de ser avô único de duas netas,

Que preenchem de alegria este velho coração.

Gostar de ler, de ouvir e de histórias contar,

Herdei dos muitos e variados ancestrais,

Que por serem humanos como nós,

Cometeram muitos erros e acertos.

Só conheci dois dos meus avós,

Os outros só os vi pelo retrato,

Mas acredito ter sido bastante,

Para entender, mais adiante,

Que apesar das diferenças sociais,

Ao fim e ao cabo, somos todos iguais.

Depois, um pouco mais crescido,

Ganhei e li embevecido,

Delta-Larousse, a enciclopédia.

Os clássicos, romances, a divina comédia

Autores brasileiros e de outras terras,

Os atuais e de outras eras.

Declamar poesias, citar autores

Elevou a autoestima às alturas.

Muitas vezes fui Pilatus, no palco do Santa Izabel,

E vivi em outros palcos, bandidos, mocinhos e coronel.

Emprestei minha voz a personagens,

Em memoráveis dublagens teatrais,

Também ensinei do Brasil a História,

E num momento escolar de glória,

Fui eleito do grêmio presidente,

Em acirrado embate com outro pretendente.

Durante o período laboral

Nenhuma falta injustificada

Nem multa de trânsito aplicada

E quando a justiça eleitoral

Precisou da minha atuação

Desempenhei com esmero a função

Que a mim fora destinada

Por quatro vezes entrei na faculdade

Mas os preços de três delas me forçaram a postergar

O ideal da realidade encarar

Com entendimento capaz de analisar

Sem as paixões ideológicas ou derrota

Tudo mais que acontece a nossa volta.

Sempre pensei que se pudesse

Voltar ao início, recomeçar

De forma diferente faria a maior parte

Para não repetir os mesmos erros

E evitar as cacetadas e tropeços

Que o cotidiano costuma dar.

Transportado por barco, trem e avião

Realizei o sonho de ver de perto

Cidades, montanhas, monumentos, deserto

Machu Picchu, pirâmides, museus, vulcão

Mediterrâneo, Atlântico, Pacífico

Mas nada se compara ao nosso chão.

Seixas a Leste, Chuí ao Sul, Oiapoque ao Norte

Esses e muitos outros locais eu visitei

No gigante Brasil, onde tudo é sem igual

Nessa Pátria sempre amada

Vi sertões, Amazônia, a chapada

Vi os pampas, mas ainda falta o pantanal.

Sou feliz pela vida que temos

Minha esposa e eu pois entendemos

Que felicidade se constrói com o saber

De que é pouco o que basta para bem viver.

Por isso escrevo, para mais adiante

Quando alguém ler os textos que escrevi

Esse alguém saberá no mesmo instante,

Que, quase sempre, fui feliz desde o dia em que nasci.

E quando de repente eu parar de respirar,

No crematório a cinza mineral que sobrar

Finalmente há de dizer por mim,

Que voltei para o nada de onde vim.

CITAÇÕES:

Só sei que nada sei – Sócrates, filósofo grego.

Penso, logo existo. – Renée Descartes, filósofo francês

Engenho e arte – Luís Vaz de Camões, poeta português, 2ª estrofe de Os Lusíadas.