saudade de Tita

Lá fora o mundo acabando. da superfície líquida do copo d'água sobre a mesa vejo em relevo o pelo de gato. hoje 'inda não lavei a louça. você viu que a escola funciona só até agosto? uma preta [descanse em paz] estuprada no leito do hospital. passo no buzu¹ e vejo um anúncio de uma loja de armas - na aldeota². maloca em cima da outra de faixa pintada. meu amigo hoje foi demitido e sua irmã, Lúcia, cometeu suicídio. ela dizia que não via sentido na vida, depois da morte de seu filho pela polícia, isso piorou.

os remédios pra dormir já não cumpriam sua meta. banzo zanzando no fundo da rede.

A Ana lá no bonja³ nem sequer acordou. clap clap. BUM. sete tiros no peito e no rosto. eu não lembrava da sua farda da escola pintada de vermelho... não quero entender nada sobre balas. nem me acostumo. esse barulho seco. todo dia. mas que tem cor da noite azul de madrugada. aurora. alvorada.

Quando morre alguém dizem que se sente o gosto pólvora ferroso na boca. que nem uma estrela quando caduca e espalha uma penca de gás pelo tempo. estes tempos! um corpo a mais no cemitério. também ouvi o Edi Rock falar.

procuro a poema que Tita escreveu e me dedicou. dentro de alguma pasta de trabalho perdida na mesinha da sala. uma moça lá do Padre Andrade que doou. procuro o versinho. pueril. virginal. assim como sua testa de um beijo de papai. que nunca apareceu. não encontro. era sobre um pintor. ou uma pintora. mais surrealista que toda escolástica estética europeia dessas aí que vocês se doutoram.

no céu e no coração de Tita eu me afogo. estou triste. poxa! eu também te escrevi uma poema. na verdade, várias. pequenas. bonecas. conchas do mar. pedrinhas no mói de terra dançando no vento. e seus olhos miúdos. a gente nem se conhecia e eu também era só mais uma menininha escura assanhada e cheia de habitantes na cabeça em pleno meio dia na pracinha do Canindezinho*. depois da aula se minha mãe pegasse, vixe! era gritaria certa.

cadê essa poema? você já pensou em ser uma grande escritora? sério?! eu também! mas já quis ser astronauta e até agora o máximo que consegui chegar mais perto do céu foi quando, numa rebelde tentativa de enfiar o dedo nos anéis de saturno, soltei meus cabelos depois de minha mãe tê-los penteado secos. sempre ficava alto. eu podia dispor centenas de escadas. cada uma encostando o pé na outra e meu cabelo orbitaria o planeta antes de meus dedos. high definition. eu me divertia.

até que lembrava do pessoal na escola.

- mãe, a senhora não sabe que todo mundo vai rir?

haha nêga da lata do óleo!

ahhh nega imunda! parei antes do fim. não sei escrever. mas isso não importa mais.

cadê essa poema? você está triste?

tem calma! que eu vou achar. já não distingo o chão das letras. beira-mar. boleto vencido. boleto pago. contratos antigos.

e eu sei bem que sua irmã não vai voltar. mamãe foi no CRAS resolver a papelada. não vai dar tempo pro velório. é, na tristeza da gente não existe lágrima. na verdade eu enterrei com a Kelly toda minh' sensibilidade. cê pode ver aqui, ó, que não sinto nada nas pontas dos sentidos. você precisa ter paciência comigo, Tita. já revirei o mundo. não encontro os versinhos, minh'menina. dona Fátima te chamou três vezes. tá na hora. não conto a ela que você bate nos meninos jogando bola na hora do recreio. eu me deleito. aprendo contigo.

¹ buzu: s.m. gíria. ônibus.

² bairro ¡nobre! da cidade de Fortaleza.

³ abreviação para Bom Jardim, bairro periférico da mesma cidade. Um dos territórios com maior índice de letalidade da capital.

* bairro que integra o grande Bom Jardim.