Entre a galinha e a asa (para Affonso Romano de Sant'Anna)
Dando faxina no meu baú de relíquias e preciosidades, encontrei uns recortes de jornais que me arremessaram feito uma catapulta no tempo. Eram diversos textos do Affonso Romano de Sant'Anna, publicados em sua coluna, no Jornal do Brasil, na década de 80, quando eu, apesar de menina, já era sua leitora voraz e tinha por hábito recortar suas publicações e arquivá-las em uma pastinha.
Me lembro que, em uma das vezes que fui ao aviário para minha mãe, quase tive um ataque de nervos quando o balconista embalou a minha galinha em cima da crônica do meu escritor. Eu era ainda uma adolescente e me faltou coragem para pedir aquela folha de jornal, de valor inestimável, preferindo optar pelo sofrimento atroz a cada movimento do empacotador. Primeiro, ele rasgou um pedaço da folha, mas deixou o texto (graças a Deus!) intacto. E depois de alguns movimentos ameaçadores, que me remoeram as entranhas, concluiu finalmente a sua tarefa, deitando a galinha em berço esplêndido, forrado com belas palavras articuladas e confortáveis que minimizavam o conceito de morte daquele ser alado, causando a impressão de que ela apenas sonhava com altos voos nunca em vida alcançados.
Felizmente, a vítima estava devidamente ensacada e eu pude sair do aviário vitoriosa, com a sensação de atravessar portais mágicos, carregando o maior paradoxo da história da cultura universal: uma galinha mortíssima e um texto transbordando imortalidade, cuja mínima possibilidade de leitura trouxe novas cores e fulgores ao percurso que me levou de volta pra casa, depois daquele resgate.