Luz maciça III

"assintomático ao subir os panos

moribundo e putrefato nos bastidores"

     Fato. Aquele pequeno Adão não seria mais o mesmo. Não antes de experimentar aquilo que lhe foi proposto na origem. Desde a constatação de um nascituro até a perda do título ancestral, a escravidão. Atado pelas mãos, não poderia alcançar nada além do que seu mestre lhe ordenava, e atado pelos pés não poderia caminhar por nenhum caminho senão aquela avenida adâmica, e vendado os olhos, cego, guiado por outros cegos, e na boca o cabresto, língua inflamada e inflamável, e seus ouvidos, cheios de cerume das vaidades e verdades com validade.
 

"e a cada pico de rotina
o lodo escorregadio
refuta o malabarista
no breve palco do cinismo"
 

     Restava-lhe apenas a aceitação daquela condição amiúde, uma reincidente e imutável situação, um conto dramático de uma vida miserável, donde cada personagem, ele próprio inclusive, tentavam mascarar aquela condição óbvia, tão penosa, tão evidente, tão diagnosticada, e de tão patente, latente, latejante, exposta, tão desnuda, tão revelada, tão descortinada, viam-se impelidos a se entulhar de pensamentos, de gentes, de rotinas. E, assim, de tanta similitude, massa, emaranhado de naturezas desvirtuadas, verdadeira pecuária hamartiológica, gado dos dias.

"e então
impregnado de claridade
adormeço harmônico
compungido
por tão fulgente
Luz maciça"

     Então, num interstício das horas, fora prensado com tamanha força imensurável. Aquele pequeno Adão não seria mais o mesmo. Aquela Luz despedaçara todo seu mosaico das certezas, rasgara seus retalhos de trapos de justiça, feito pó, fragmentado. Tão maciça era aquela Luz que não restara mais nada daquele pequeno miserável. Então, refeito, cada partícula atômica, cada parte, mas agora impregnado daquela Luz maciça, andava harmônico em meio ao caos, sinérgico com a claridade da sua nova condição. Impregnado da luz maciça do próprio Cristo, ressucitado.