Munição

mal se percebe a picada no seio da floresta

salvo que há a reta por onde andar

sem tantas ramas a enroscar

a luz do sol chega esmaecida

ao chão verde e encharcado

por ali caminho com a espingarda às costas

mas já sem mais um cartucho de sobra

pois disparara os poucos que tinha

para abater o mutum, peru da selva

que seria daquele dia a grata refeição

junto com castanha, farinha, arroz e feijão

e eis que na picada adiante de mim

assomam uma enorme anta e sua cria

calmamente a pastar, revolvendo as folhas e o chão

parece que assenhorada pelo tamanho

a mãe seguia seguramente

não se incomodou com a figura humana

mas deve ter se perguntado que bicho era aquele

que nunca o vira, nem por ali, nem noutras bandas

e junto da anta-materna e seu filhote

ainda vinha uma paca a escoltar-se

esta sim já mais desconfiada,

além da escolta da anta

ao dar comigo tratou de escapulir

e enquanto o bizarro e improvável encontro transcorria

eu lamentava a falta da munição

pois ali estava para muitos dias

a farta refeição que nestas brenhas

era feita da caça que se conseguia

detive-me então a fazer o que podia

observar aquela comitiva de bichos

que pela calma, quase me faziam um deles

um estranho entronizado na família da mata

não fora aquela frustrada intenção

mas não foi pela falta daquele cogitado tiro

que os homens do acampamento vieram a passar fome

o mutum deu conta do jantar daquele dia

e outras caças vieram depois

os anos passaram, muitos anos

e a cada ano mais agradeci

a falta bendita daquela munição

Publicado no livro "memórias amazônicas" (2011).