"O dissipador"

Ouvia gritos, depois um medonho silêncio. As vísceras gritavam emergindo da ira. Era noite quando desfaleceu. Ao acordar, na manhã tênue, apenas o frio que lhe congelara os pensamentos se fazia presente, as marcas que na pele cravara a algoz luta, ainda aquecida pelo sangue que gotejava.

Tentativas vãs sucederam-se na pequena ação de abrir os olhos, pesavam as pálpebras, latejavam em ardor e queimavam com o escuro que impelia a sua própria visão.

Seu corpo, um mastro de imponência, inerte sobre a cama não mais causava efeito, era dejeto reputado de um homem esfacelado. Multifacetado pela sua ignorância e insensatez.

Nada de abrir os olhos, nenhum toque lhe fora permitido. Vegetava em sua própria vida, ali inerte e sombrio. Medo! Era o medo o seu maior companheiro. Batiam-se os dentes em temerosa canção. Era intrépido o seu pensar. Era certo o seu desgosto. Havia sucumbido o seu austero desprendimento, era um morto-vivo.

Não havia recordações em sua memória, havia apenas o vazio. Boquiaberto e rígido feito madeira. Era a própria seiva da morte, que ali prostrada o clamava. Fim, o limite entre a sua parcial lucidez e a insanidade havia se estabelecido, por sorte ainda lhe restara uma lacuna. Sorte ou armadilha da própria morte, que agora lhe ronda?

Fez da lacuna o seu fio de esperança. Clamou perdão em entoada voz. Suplicas ao pai desconhecido foram proferidas. Ergueu suas mãos ao céu, e numa devoção jamais vista, implorou salvação: “Salve-me, meu pai desconhecido. Olhai para este seu filho pródigo que está na beira do precipício, pronto para ser devorado pelas serpentes!”.

Silencia ainda o céu, nem vento e nem brisa: tudo era a inércia, como fora sua própria vida. E ainda, clamando veementemente atenção, reverbera-se: “Fui estróina, perdulário, um pecador atroz e demente. Sim, meu pai desconhecido, eu fui contrário e ainda o sou, mas te rogo perdão. Perdoe-me pela minha falta!”.

E assim, do céu o clarão se fez vida. Em rajadas desceram raivosos raios. Candeeiros latentes do fogo lascivo: era a salvação anunciada pela clemência passiva.

Em segundos o estranho filho do pai desconhecido se fez pó.


Conheceste as leis divinas? Pratica-as ou as ignora?

Não blasfeme em prol da fortuna. Mas não seja hipócrita ao ponto de amar àquele que dantes odiou. Perdoe-o. Ignore-o. Enfim, esqueça-o.