Complexo de duas ruas
Quando eu era pequeno, morava em uma casa que dava para duas ruas. Uma a gente chamava de rua da frente. A outra era a rua lá de trás. Lembro-me que me intrigava falar dois nomes de ruas diferentes para me situar, a depender da ocasião. Menino, ficava perdido, me sentia estranho em relação aos colegas, que davam o mesmo endereço em todas as oportunidades. Até hoje, sinto que esse fato se tornou um paradigma importante na minha vida, posto que suspeito que padeço do complexo de duas ruas.
Uma rua tinha um nome mais completo, com letras estranhas a um menino: y e g mudos. Soava chique dizer as três palavras corridas e sem conectivos para indicar que morava lá. Quando alguém pedia o endereço oficial, enchia-se a boca para dizer:
- Emygdio Ferreira Sacramento!
A outra rua tinha um nome menor, mais familiar: Ernesto Nazaré. Meu tio-avô atendia pelo nome de Ernesto e morava naquela mesmo rua. Não era tão claro para mim o que era apenas uma coincidência de nomes. Tio Ernesto e Ernesto Nazaré! Por vezes, tio e rua se confundiam.
Na rua do tio-avô jogava dibrinha, favorecida pelo fato dela ser de terra e existir poucos carros circulando dentro dos bairros, tacava pedras nos telhados dos vizinhos, me apaixonava por uma vizinha, pegava ponga no caminhão de lixo. Na rua lá de trás comprava o chup-chup na casa da vizinha e ajudava minha mãe a vender sorvete de milho no portão. Via vizinhos e parentes se reunirem para conversar, brincar, fazer churrasco, nos dias em que não eram de trabalho. As famílias moravam por anos na mesma casa, de modo que eu conhecia todos.
A rua da frente era o perigo dos carros, a minha foto de camisa social em uma parede cinza e com franja no cabelo – a qual nunca gostei! -, a amizade com os comerciantes, que sumiam à noite e durante os finais de semana. Era a rua do comércio, com o que minha mãe, na sua loja – que eu devia me comportar -, trazia de um lugar desconhecido e frio chamado São Paulo, que era grande por causa do ão do nome. Nessa rua, passavam muitas pessoas que moravam em outras ruas.
A rua lá de trás era mais segura, havia o gostinho de liberdade ao brincar descalço e despreocupado na terra. Minto. Deixava de ser segura quando as motocas, não respeitando a divisão que eu estabeleci, saíam em alta velocidade da oficina da rua da frente para serem testadas na rua lá de trás. À parte isso, esta era a rua das permanências.
Na rua da frente não me lembro de estripulias de criança: era a rua dos adultos, do homem bêbado passando, do movimento do asfalto, do contato com o mundo - o contato com o que a feira aos domingos trazia de outras ruas.
Nessas duas ruas acho que morei pouco tempo: cerca de 6 anos - talvez dos 2 aos 8 de idade. Então, o que eu tenho a ver com elas?
Não digo que todos os escritores sofrem desse complexo. Cada um que descubra os seus. Mas desconfio que só escrevo por causa dessas duas ruas. Uma me esconde para brincar com as palavras, fantasiar a realidade, escrever. Outra me permite entrar em contato com o mundo, buscar mercadorias, ser lido.
Como se faz diante de uma encruzilhada, não me peçam para escolher uma delas - e permanecer. Isso seria a morte! Se a cura, doutor, passa por escolher apenas uma, a escrita é minha arma nesse complexo-momento: torno-me aquela casinha, entre a Ernesto Nazaré e a Emygdio Ferreira do Sacramento.