Ainda Que Eu Falasse a Língua dos Anjos e dos Homens
Ainda que eu dissesse que amava papai mais que todos os mortais, que mesmo não aceitando o tudo dele, eu o amava desde as entranhas de meu ser, não teria vivido o amor de filha na proporção agigantada, quando compartilhei com Deus Pai, a disputa pela posse do papai. Quando foi decretada a partida dele.
Ainda que eu teria dito que tinha sentido Deus, experimentado Ele pela mente e coração, no campo da Filosofia, da psicologia, da mentapsicologia, e todas suas especialidades, e da fé, não teria sido honesta. Até que na noite silente do dia de ontem, quando me foi informado do falecimento de papai, e encerrado a guerra travada para a partida vitoriosa da alma dele, e sua retirada consentida, vivendo a linguagem do desapego com Deus.
Ainda que eu falasse que na doença que portei conheci Deus na sua delicadeza e na sua disciplina no aprendizado, não teria enxergado, pela visão superior, o preparo que Deus disponibilizou ao meu Ser para que em mim fosse despertada a compreensão de que o relógio Dele é indeclinável, tem mente, tem consciência, e é capaz de preparar-nos para a partida .
Papai foi visto por mim quando nasci, quando o senti entrando no quarto de hospital para me re-conhecer, quando dirigi meu olhar em sua direção, antes mesmo de me ver.
No hoje, testemunhei o sepultamento do seu corpo físico, depois de tê-lo visto submeter a um processo lento de murchamento. Despedindo de papai numa cerimônia majestosa com meus pares, amigos e familiares, onde choramos sua ausência.
Ainda que dissesse que Deus existe, e que sua longanimidade dura para sempre, não daria a completude que meu coração se apossou, na aceitação calorosa das escolhas divinas no destino espiritual da alma do papai.
Provei o fogo da prova do sentimento de posse, vivi o extremo da verdade de que papai não era meu. Foi o homem que emaranhou o si de si para Eu ser na mente que confabula, busca a expansão da consciência crística, o caminho para o retorno a Deus.
Dizer que terei ou não papai mais para o bom papo, para os confrontos calorosos de ideias, para os antagonismos e debates, para as afinidades compartilhadas, que serviam de desculpa para olhar um e outro no Espelho Divino, seria uma meia verdade, com um pé na lógica e outra na intuição.
A verdade inteira é que a partir de sua partida, terei papai conosco, e não terei, será o José Carlos sem o corpo que o representava. Viverá em meu caráter lembrando-me do seu melhor, que me auxiliou firmar as bases estruturais de minha personalidade, para que eu fosse nesta existência, única e indivisível.
Manterá ligado a mim pelo amor infinito e eterno.
Querer saber o que papai foi, para onde ele foi, ou o que virou dele, depois de todo seu trabalho? É o mesmo que não encontrar respostas para o sentimento que em mim transborda, restando render-me ao alimentar das águas poéticas de Camões, para refrescar o abrasivo da saudade:
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?