Letras da Arábia - Delenda Cortesópolis
Eram três os descontentes.
- Estamos fartos da ponta da palha a roçar no ouvido, do macio do algodão no corpo da gente, dos pés deixados no tapete fofinho. Estamos fartos da conversa peiada, da palavra medida, do soco polido, do tapa de luva.
Descidos à rua, de ombros unidos, ao vê-los de longe se os tomara por ébrios. E vão qual borrachos, falando bem alto, se vê bem sua juventude, apesar da barba espessa de dois e do bigode fino do mais alto: as espinhas no rosto os denunciam.
- Estamos fartos do diz-que-me-diz, do isso-é-errado, do isso-é-melhor, do isso-é-cultura. Queremos a água na bica ou na bico da garrafa e que, à maneira dos vikings, escorra por nossas barbas, pescoços e ombros, se ela assim o desejar. Salve o murro potente, os pés caroquentos, alheios aos espinhos, a roupa manchada, o cabelo incorreto, o sapato rasgado.
Eram três os descontentes.
As sombras no asfalto, a lua à espreita, as nuvens separadas, um carro, uns faróis, a noite bonita, os anúncios piscando...
- Abaixo as visitas de cortesia, os cumprimentos obrigatórios, as formalidades de salão. Abaixo os talheres, os copos de porcelana, as boas-maneiras, queremos comer com as mãos, queremos a beligerância, em guarda:
- Saque do garfo, arranco da faca e façamos um brinde a todos os vândalos, a todos os bárbaros.
Delenda, Cortesópolis! Cortesópolis vai ser destruída.
A lua num gordo de vaca leiteira, as estrelas coalhando o céu de suspiros. Sob o dilúvio eterno e infinito das luzes do alto, cá embaixo, a impertinência, a juventude e outras disposições transitórias.
- Mas que, pelo menos, se respeite a lei do silêncio" - faz uma voz.
- Logo virá a Policia a consertar essa cambada. Escutem só:
- O que têm de errado os meus sapatos ou roupas que meu coração não possa contornar?
(Jeddah, Arábia Saudita, 07/75)