MITOLOGICAMENTE: GIRASSOL

(Para Clicia-menininha, minha doce mãe)

Pudera eu coser o tricô historiográfico da genitora delicadinha, antes de crepuscular nossas pálpebras.

Minha mãe nasceu mitológica, a raiar pelos cantos da insensibilidade austera alguma coisa de riso poucochinho ou estandarte que reverbera em alaúde. Sua germinação estranha, aludida e lúdica, dera o primeiro filho: ser gauche na vida, poeta e mago. O segundo menino, por ironia dos deuses da Arte, nascera cronista, contribuinte de jornal. A caçula, encerrando o ciclo-Capitu, estreou-se musa-nosso-mundo.

Não poderia eu colocar, em vão, melancolia por trás das portas ou nas cortinas louçãs. Nossa casa nunca tivera santeiros, guirlandas, sacos de estopa ou um largo tanque. Era pouco matagoso ou mata-burro pra fazer sentir-se tocado por algo findo. O que dessedentava nossa infância era, por certo e modo de fazer, o sol a derreter em cascatinha pela janela da cozinha.

Mãe cozinhava feijão, arroz, frango e purê de batatas. Ao seu derredor, as rasuras de inocência por lápis coloridos que, inevitavelmente, acabariam. No cheiro das panelas: valsinha e alguma coisa de sertão-menos-sertão-mais-nossa-própria-sensação.

Vovó fazia "capitão" para os meninos que devoraram vendo desenhos e outras distrações. As mochilas da escola logo se enchiam e caminhavam, juntos, felizes como pintassilgos.

Vovó morreu. Mãe inclinou um olhar profundo. Vovô também morreu. Mãe fitou o horizonte, como namoradeira a tomar banho de sol e preencher seus pulmões de gás hélio.

Gira-gira mundo, gira-gira, sou filho de girassol.

Italo Samuel Wyatt
Enviado por Italo Samuel Wyatt em 21/04/2019
Reeditado em 21/04/2019
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