fogo no rio
numa das ocasiões
desembrenhamos depois de duas semanas
demos no rio
na casa do beradeiro pernambuco
ainda desta vez nos espantamos
com a luz do sol nos ofuscando
e com o amarelão de nossas peles
fomos avisados que uma família de beradeiros rio acima
bem a caminho da fazenda
tinha se mudado, expulsa pelos avisos do rádio
e deixara a palafita abandonada
nós, os forasteiros, e os peões
logo nos alvoroçamos
com o que poderíamos encontrar
na roça da moradia vazia
pois legumes e verduras
eram-nos iguarias raras
então demos um jeito
de apoitar naquela casa
durante o retorno à fazenda
no roçado havia somente pimenteiras
da altura da cintura dos homens
com pimentas rubras, amarelas, verdes, alaranjadas, matizadas
com o formato de pequenas morangas
e, felizmente, eram pimentas-doces
que começamos a mastigar mesmo cruas
o sabor de vegetal fresco nos era muito grato
e também o seria a pimenta em salada ou refogada
mistura para o arroz, feijão, farinha e carne de caça
enchemos dois grandes balaios
feitos com cipó trançado amarrado com envira
com as coloridas pimentas-doces
e enquanto o barco nos levava à fazenda
íamos mastigando aqueles inusitados petiscos
mas eis que daniel, um dos forasteiros
dá um urro de raiva e dor
que a todos assustou
olhamos para ele e vimos olhos aterrados
e faces mais que avermelhadas, em fogo
e antes que pudéssemos perguntar ou entender
ele enfiou mãos e cara no rio
as mãos em concha tomavam da água
que ele levava à boca e cuspia, repetida, sofregamente
depois que conseguiu cuspir algumas vezes
conseguiu também gritar que a pimenta queimava
e enquanto gritava
e procurava livrar-se do fogo que quase engolira
vimos seu corpo começar a ficar marcado
vergões vermelhos
por onde a baba de fogo escorria
a agonia do infortunado degustador de pimentas
sem que nada pudéssemos fazer
demorou alguns atônitos minutos
e que foram vendo
o susto inicial virar risos e troças
até que tudo se acalmou no barco
que seguia pelo rio
a proa da canoa desdobrando as águas rubras
da mesma cor da pimenta-de-fogo
o arrebol incendiara o poente, o céu, a mata, o rio
o reflexo vermelho daquela pimenta-de-fogo
escondida entre as doces
invadira toda a tarde amazônica
depois todos tomaram muito cuidado
experimentavam antes as pimentas a serem consumidas
e não se encontrou mais nenhuma pimenta-de-fogo
parece que aquela única tivera a missão
de tornar-nos inesquecível
aquele retorno no fim de tarde
de fogo no rio
Publicado no livro "memórias amazônicas" (2011).