elementar, meu caro eu
De longe já se via que se tratava de um caipira daqueles de acordar o galo. Ao meio-dia, no coração da cidade, parecia querer exibir o dele, vide camisa desabotoada (e desbotada), revelando um terço. Ganhou da mãe, pensei. Do outro lado do peito, no bolso, ostentava um exemplar dos mais tradicionais pentes marrons, cuidadosamente ajeitado atrás do seu erregê. Usava um chapéu que deve ter sido feito do couro de algum bicho já extinto, pensei. Em seguida, imaginei que poderia ser uma herança de alguém, assim como sua calça jeans surrada, de barras dobradas, para mostrar as botinas que deveriam estar fora de qualquer catálogo possível, e me arrependi de ter achado engraçado. Seriam aquelas as melhores roupas dele? As de viagem? Carregava uma mala, aparentemente, pesada. Até que, repentinamente, parou. Soltou a mala, pôs as mãos na cintura e ficou olhando para a frente.
Eu estava sentado em um banco da Praça, a Generoso Marques, à esquerda do rapaz, há uns seis metros de distância dele. Constatei que ele mantinha, pendurado, no canto da boca, um pedaço de mato, que deveria ter trazido de longe, já que parecia ser dos que os bicos de lacre pousam, aos bandos, para degustar as sementes. Pronto: ali estava uma figura que poderia protagonizar tanto uma canção do Rolando Boldrin quanto uma do Neil Young! Continuei a especular: deve ter vindo da rodoviária, a pé. Está descansando um pouco. Vai descer a Rua Riachuelo. Provavelmente, pegará algum ônibus para Tamandaré ou Itaperuçu, lá perto do Passeio Público...
O caipira, cruzou os braços, logo levando uma das mãos ao queixo. Percebi que ele fixara a vista na estátua do Barão do Rio Branco. O ônibus pode ser para Rio Branco do Sul, pensei. Ele olhou para os lados, me deu uma breve encarada. Vi, de canto de olho, que ele ficou meio assustado, logo conto o porquê. Pegou a mala, deu alguns passos para se aproximar do monumento, ainda olhando para os lados. Soltou a mala e fez o sinal da cruz, semiajoelhado. Quem viu, riu. Exceto eu, acho. Minha teoria inicial era a de que ele não era alfabetizado. Que, se ele soubesse ler, nem teria parado, até ignoraria a estátua. Que não teria de ouvir um camelô gritar não é o João Paulo Segundo não, meu chapa!, nem as gargalhadas a seguir. Ele ficou quieto, desviando o olhar das pessoas. Até se inclinar, buscando a alça da mala, e me encarar, já face toda rubra, arqueando as sobrancelhas. E veio em minha direção.
Eu logo completaria quinze anos naqueles dias. Ouvia uma fita cassete do Iggy Pop, no Walkman, enquanto lia o Celso Pucci detonando algum disco de alguma banda que eu já não gostava, na revista Bizz (sim, o tempo ainda era o do início dos anos 90), quando o caipira surgiu. Eu estudava pela manhã, e estava descansando de um megassanduíche que havia comprado no shopping Mounif Tacla, enquanto não dava a hora de iniciar meu expediente, às treze, que já era no sistema financeiro. Usava um corte moicano, o que, na época, já era motivo suficiente para levar geral da Polícia Militar todos os dias. Corrente com cadeado no pescoço, jaqueta com botons de bandas punks, calça jeans, não surrada como a do rapaz, mas com rasgos nos joelhos. Estava orgulhoso por usar, pela primeira vez, uma camiseta da banda Napalm Death, recém buscada nos correios, paga com vale postal e tudo. Minha cabeça estava começando a doer e eu já culpava o sanduba.
Eu pensei que ele iria me xingar, deu a impressão. E que queria descontar a vergonha em mim. No entanto, conforme ele chegava mais perto, andava devagar, talvez pelo peso da mala, pensei, seu semblante ia mudando. Como se, visualizando melhor minha aparência, deixasse de se importar com os risos, com o peso carregado e qualquer outro incômodo. Foi desviando o olhar e passou direto. No meu entender, no breve percurso que fez, do Barão até mim, ele compôs em seu pensamento algum conceito que o fez sentir pena, o libertando daqueles minutos inglórios. Eu estava na pior, segundo o que eu pensava que o caipira pensava.
Sempre fui de querer adivinhar as coisas. Como, às vezes, impressionava as pessoas por tanto, já me achava o Sherlock Holmes das Araucárias. E quando me perguntavam como eu as descobria, dava respostas como é simples, um métodozinho que qualquer criança do quarto ano de qualquer curso do CEFET já sabe... Em alguns momentos eu me sentia um tanto infantil, com tais brincadeiras. Ao mesmo tempo, sempre satisfeito, jamais revelando qualquer procedimento. Todavia, ali, naquele banco de praça, por alguns instantes, foi como se eu fosse rebaixado à mais insignificante personagem da mais infame das infames literaturas.
O labo B da fita cassete terminou, uns três passos do caipira depois. Significava que estava quase na hora de bater o cartão. Levantei e tentei não andar muito rápido, deixando que o rapaz seguisse sem me ver novamente. Porém, ele percebeu que eu estava o "seguindo", parou e virou. Bem no momento em que eu havia me agachado para amarrar o coturno. Ele pensou que eu estava disfarçando e imaginei que fosse, enfim, dizer alguma coisa. Abaixei a cabeça para o ignorar, ele permaneceu parado. Acabei me enrolando na amarração, derrubei a revista, quase, o Walkman. E o cidadão derrubou o chapéu, que havia tirado para enxugar o suor da testa com a manga da camisa. Acabei voltando alguns passos para buscar um marca-página que caiu de dentro da revista. Quando voltei, vi o caipira, já um pouco distante, olhando fixamente para o outro lado, de braços cruzados, levando uma das mãos ao queixo, talvez para segurá-lo. Bem, eu sabia que não havia outra estátua ali, sabia que ele, então, boquiaberto, não estava decidindo se faria o sinal da cruz. E como não se constatava indício de algum alvoroço, ou coisa assim, fiquei curioso e acelerei os passos.
Durante muito tempo, parte dos domos acrílicos que cobriam pontos de ônibus, bancas de jornais e floriculturas da cidade, eram de uma cor violeta, que ao sol, à luz, produzia certos efeitos que dão saudade. No caso, era a cobertura de uma floricultura. Eu parei, quase ao lado do rapaz, para também observar a obra de arte que uma florista produzia, com ágeis e precisos manejos, com tesouras e estiletes, em rosas e flores menores que davam forma a um enorme arranjo. Sob o domo, os cabelos avermelhados dela adquiriam uma cor vívida que se confundia com as das pétalas. Eu pensava só pode ser uma performance. Ela nos percebeu e disse oi, tudo bem? Respondemos, ao mesmo tempo, tudo! Nos encaramos por dois segundos e voltamos os olhares para ela. Acredito que foi ficando acanhada, sendo observada por dois jovens de visuais tão distintos. Foi reduzindo a velocidade dos movimentos, até que entrou para atender uma cliente. Boa tarde para vocês. Ele respondeu, eu acenei com a cabeça e fui andando. Ele respirou fundo, e antes de pegar a mala, disse parecia um milagre, né? Concordei com a cabeça e desci a Monsenhor Celso, já atrasado. Ele se foi, no outro sentido, Praça Tiradentes adentro.
E se o Barão fosse alguém que ele respeitava? Se era conhecido de seus antepassados? Se seu sinal da cruz fosse apenas uma forma de reverenciar alguém? Imerso em rasos raciocínios, passei aquela tarde, até quase concluir que o caipira era eu. Que, possivelmente, aquele rapaz, nem se achava caipira. Que eu estava lendo demais. Que a adolescência estava me emburrecendo. Ou ainda, que eu estava para morrer de intoxicação alimentar.
No dia seguinte, ainda sem poder sequer pensar no megassanduba, passei pela floricultura. Lá estava a garota, então, sentada no chão, de pernas cruzadas. Fiquei olhando de longe. Trabalhava as flores vagarosamente, como se lapidasse diamantes. No entanto, o espetáculo proporcionado pela luz através do domo violeta era o mesmo. A moça possuía uma técnica que me fazia lembrar muito daquele filme do Tim Burton. O telefone da loja dela tocou e ela entrou. Antes de tomar o rumo da Monsenhor, imaginei o caipira ali, no mesmo lugar, dizendo novamente, antes de pegar a mala, parecia um milagre, né? E eu responderia pois é, as aparências encantam. E, prestes a me imaginar lhe dando um tapinha no ombro, soltando um mandei bem nessa, né, camarada?, a fita cassete que eu estava ouvindo, parou. Pus a mão na mochila para pegar a do Iggy e entendi que já estava sem ela desde o dia anterior. Quando quase derrubei o Walkman, a fita foi ao chão. Maldito caipira! Ele havia simulado ter derrubado o chapéu, para a pegar, quando fui buscar o marca-página caído? Proferi todos os palavrões que conhecia, inclusive os em outros idiomas. Minha cabeça voltou a doer, amaldiçoei a lanchonete que me vendeu o sanduíche (tempos depois o Shopping inteiro fechou) e entrei em uma farmácia. Enquanto eu esperava uma mulher ser atendida, o pai dela, senhor grisalho, com os óculos mais grossos que eu já havia visto, em uma cadeira de rodas, ficava me encarando. Apresentava certa paralisia, mas fez um esforço para mexer o canto da boca, como se fosse sorrir. Mexeu os olhos como se quisesse que eu olhasse para a mulher. Compreendi que ele queria que eu prestasse atenção no que ela dizia. Ele demonstrou satisfação, abaixando um pouco a cabeça, com o fato de alguém mais ser testemunha do que ocorria. Ela quase enlouquecia o farmacêutico de tanto falar, reclamando dos preços absurdos, fornecendo detalhes técnicos das doenças, intercalados com afirmações de que estava sofrendo discriminação por ser baixinha, gordinha e ter passado dos quarenta. Aí ela tirou uma cópia da Constituição da bolsa, afirmando que não se importaria em ficar a tarde toda ali, fazendo a leitura em voz alta. O gerente finalmente foi acionado e lhe concedeu os descontos. Então o senhorzinho levantou o indicador, o que significava que eu deveria prestar ainda mais atenção: aí ela disse da próxima vez corto meus pulsos no seu balcão!, dando uma piscadinha para o pai, já empurrando a cadeira dele até o caixa. O velhinho ainda se esforçou para fazer com uma das mãos o sinal de positivo, e com a outra, me deu um tchau. Logo em seguida, o farmacêutico perguntou o que eu queria. E eu respondi nada não, valeu. Na saída, através de um espelho, estrategicamente instalado ao lado da balança, pela primeira vez, olhei para mim como se tivesse o olhar de outra pessoa.
Voltei ao calçadão cheio de teorias para compor, doido para pegar o caderno e escrever um tratado. Quando estava para descer a Monsenhor, comecei a ouvir Candy, do Iggy Pop, que ele canta com a Kate Pierson. Vinha da floricultura. A garota sabia a letra, cantava junto, varrendo o excedente de sua última obra. Ela poderia ter encontrado a fita, o caipira poderia ter dado de presente, ou ainda, simplesmente, a música poderia estar tocando na rádio, o que era comum em certa estação naqueles dias. O fato é que não era mais importante. A questão era: a soma de o que eu pensava que era, mais o que pensavam que eu poderia ser, com base em minhas atitudes, costumes, roupas, gerava um outro eu que eu precisava conhecer. Precisava saber se o alter ego era responsável pelos meus sucessos, pelos meus fracassos... Ou, pelos dois.
Fui até aquele mesmo banco. Dei uma encarada raivosa no Barão, pois quanto mais eu me afundava em tentar descobrir, maior era a minha vontade de poder tirar a eternidade de folga, ficar descalço, ouvir o Boldrin ou o Young, deitado na grama, mascando um pedaço daquele mato e desenhando nas nuvens. Era como se qualquer resposta se resumisse em quanto mais simples nós formos, menos segredos teremos a esconder de nós mesmos.
E que, se quisesse continuar a compreender as pessoas, teria de sempre buscar o melhor dentro do que elas pudessem expressar, para que a melhor impressão possível me desse o caminho. Percebi o movimento da Praça já se alterando, o que indicava que eu estava atrasado para o trabalho. Então corri. Lembro de ter sentido as pernas pesadas. E de ter dado uma última olhadinha para a florista. Envolvida pelas cores, ainda cantarolando, parecia se divertir, parecia estar além de tudo, parecia estar fora do tempo. Parecia uma criança.
E eu, não mais. Mesmo.
5/7/2009