castanha-do-pará

muitas vezes, pelo chão da mata

dávamos com os ouriços

da castanha-do-pará

a maior parte das vezes

eu nem conseguia saber onde estava a castanheira

os ouriços espalhavam-se por uma grande área

a árvore era enorme, altíssima

e, aos meus olhos, ocultava-se na folhagem densa

os ouriços ora estavam intactos,

ainda com as castanhas dentro

ora estavam ocos

e a redonda perfuração na casca muito dura

com marcas de fortes dentes

denunciava o caprichoso trabalho da cutia

ela, como os homens, muito apreciava as castanhas

no primeiro domingo de acampamento

o peão-falador, passarinho

disse-me que a castanha

era o pão e o leite da mata

enquanto com cuidado

diante de meu olhar de aprendiz

ia mostrando-me primeiro

como abrir o ouriço

apoiado sobre um cepo grande

golpes curtos certeiros

do terçado muito bem afiado a lima

em toda a volta do pequeno orifício natural

que aquele duríssimo invólucro trazia

até que, destampado o ouriço

as castanhas de casca marrom rugosa

entregavam-se desprotegidas

depois passarinho segurava com cuidado cada pequena castanha

e com o mesmo grande terçado

ia cortando-lhe a casca rugosa ao longo do comprimento

sem chegar a ferir-lhe a semente branca

que permanecia agasalhada em fina e delicada pele marrom

e me ofereceu a prová-la

eu já provara castanhas no natal da cidade

mas o que experimentei com a castanha da mata

foi algo inédito

à primeira mordida, a semente macia

estalou, partiu e verteu sumo

que crescia a cada nova mordida

nunca sentira o sabor da castanha assim fresca

e sua polpa tenra desmanchava-se suave

compreendi que a castanha que conhecíamos na cidade

fora colhida há muito tempo

e já sem viço e desidratada

chegava-nos desnaturada

de suas virtudes selvagens

e passarinho convidou-me

a experimentar a castanha com café

e então descobri por que ela era o pão

e também o leite

pois que ela fazia recriar melhores

os sabores dos doces e bolos que a imaginação

poderia trazer àquele desjejum dominical

no seio da floresta

Publicado no livro "memórias amazônicas" (2011).