classe econômica
um dia aconteceu um desencontro
éramos dois forasteiros, eu e gustavo, e o peão-mateiro donato
depois de uma jornada de medições
a noite nos pegou a vários quilômetros do acampamento
e era impossível caminhar pelas picadas no escuro
os tocos dos arbustos cortados a golpes de terçado
a um palmo do chão
eram ponteiras vivas
qualquer queda poderia ser um desastre
enquanto a noite caía
donato cortou forquilhas, varas e palmas de palmeira
e construiu três jiraus baixos
a três palmos do chão
para que pudéssemos dormir
longe dos bichos rastejantes
depois de uma improvisada refeição
de farinha, castanha e alguns taperebás colhidos na mata
tentamos dormir protegendo toda a pele dos mosquitos
mas um tal catuqui, muito pequeno
enfiava-se entre os cabelos
e ia picar o couro cabeludo
e a certa altura
ouviu-se um ruído na copa das árvores acima de nós
eu nada via
mas donato, que tudo enxergava
procurou tranquilizar-nos
dizendo que era só um macaco-da-noite
que, curioso, nos espreitava
e enquanto estávamos nestas lidas
com o estômago a roncar
as roupas e o couro suarentos
o medo, os macacos, os mosquitos
ouvimos o prolongado zumbido de um avião a jato
passando muito alto, exatamente acima de nós
vindo de noroeste e indo para sudeste
talvez de manaus para são paulo ou rio
então, enquanto o zumbido lentamente veio e se esvaiu
imaginei o privilégio dos passageiros
da classe econômica daquele jato
cujos desconfortos
eram certamente bem menores que os nossos
Publicado no livro "memórias amazônicas" (2011).