três tiros

os homens da mata vivem de mitos

eu tinha de comandar uma das quatro equipes de trabalho

mas, menino que era, nunca conseguiria

se não tivesse algum atributo mítico a me apoiar

nos primeiros dias

por medo e pela camaradagem do piloto da avioneta

carregava na cintura um revólver trinta e oito

de tambor, seis tiros, cano médio

que pesava muito nas caminhadas pela selva

depois, com o tempo, veio a confiança

e o incômodo de carregá-lo

tornou-se maior que a coragem que ele trazia

e acabei devolvendo-o para seu dono

mas não sem antes dar alguns tiros,

por providencial diversão

na tarde de um dos primeiros domingos

os peões-garimpeiros e mateiros,

que carregavam armas calibre trinta e dois

iniciaram uma competição de tiro

usando manchas no pau das árvores como alvo

passarinho, o peão-garimpeiro mais rodado e falador

logo mostrou ser também

o melhor atirador

colocando três tiros dispersos dentro de uma mancha

com pouco mais de um palmo de tamanho

e logo passarinho fez o desafio que todos esperavam

e o doutor, sabe atirar com essa arma?

eu nunca atirara com aquele revólver

mas aprendera com meu pai a segurar uma arma,

fazer mira e apertar o gatilho, lentamente

e assim fiz, mirando outra mancha na árvore

um pouco acima da mancha de passarinho

e para minha felicidade

o tiro alojou-se lá, dentro dela

embora perto da borda, embaixo, à esquerda

mas estava lá, no pau da árvore

não se perdera na mata

como todos, inclusive eu, esperavam

mas passarinho, duvidando, continuou

dê outro tiro!

fiz nova mira, e depois do segundo disparo

todos olhavam para a mancha no pau da árvore

a princípio duvidosos, ainda incrédulos

até que donato, o peão com fama de tudo ver

decretou: acertou, bem em cima do primeiro!

no começo desconfiados

depois os peões começaram a murmurar

constatando que a marca do primeiro tiro crescera

e antes que todos estivessem convencidos

da coincidência dos dois tiros

passarinho, ainda inconformado, continuou

dê um terceiro tiro!

e depois do terceiro disparo

cuja mirada com a respiração suspensa

encobriu minha prece aos espíritos da mata

e cujo ruído ensurdeceu a floresta já muda

arrastou-se o silêncio entre os bichos e os homens

até que donato falou:

de novo, acertou bem em cima dos dois primeiros!

e agora, a marca dos três tiros juntos

quase que um exatamente sobre o outro

era inquestionável

e passarinho, resignado, reconheceu:

o doutor é bom de tiro!

estava feito o mito do menino-doutor

que era bom atirador

e logo ganhou o respeito dos peões

daquele acampamento, e dos outros

e dos homens da fazenda, e dos beradeiros

o mito-notícia logo se espalhou

tenho muito a agradecer

àquela providencial coincidência

felizmente nunca tive que pôr à prova minha pontaria

em situações de real necessidade

Publicado no livro "memórias amazônicas" (2011).