[Longe de mim, Longe de ti: A Impossível Captura]

[Uma écloga ou... uma tragédia urbana?!?]

... E então, naquele instante, o mundo era ainda cinza chumbo, mas no canto dos galos, o sinal de alívio: era hora de as assombrações irem embora, cessarem de voar de trava a trava do telhado, por entre o rápido sshss das asas dos morcegos.

Lá fora, há a fenomenologia do tuuumm das enormes mangas-espada caindo no terreno balofo atrás da fornalha de tijolos. Sempre que eu ouço esse som cavo da queda das mangas, ponho-me a calcular qual o mecanismo íntimo pelo qual as cinzas da fornalha impediram a compactação do solo. Não fora a desmistura da cinza na terra, não haveria nenhuma fundura no som, e eu não estaria agora na expectativa da próxima queda, já ouvi cairem três mangas. Espero, não sei por que, um número par, 4 ou 6... então me levantarei; como se pode ver, a razão mais simples das coisas é a que mais ignoramos.

Eu me revolvo no catre, a ver se ainda aproveito um restinho de sono que insiste em não deixar o meu corpo, foram renhidas as tantas lutas, as tantas vidas sonhadas nesta noite - está dificil de voltar à realidade mesquinha do dia. Tento retomar aquela parte de sonho que foi interrompido pela tuuumm da queda da primeira manga... onde é mesmo que eu estava? Por que havia tantas vozes em línguas estrangeiras? Uma algaravia só, coisa fora desse meu mundo, muito diversa da fala sincopada dos vaqueiros.

[Huummm... esse cheiro de pão-de-queijo saindo do forno, o café... deixarei o sonho para amanhã, eu sei que ele voltará, eu estou crescendo, dizem-me... assim, sonho muito... será?]

Minhas circunstâncias me tangem: estar nestes dois mundos não é fácil, meus sentidos chegam a se confundir! Freqüentemente, estou em um deles, mas, na verdade, eu sou no outro, e vice-versa... é quase isto! Vejam só: eu dormi na viagem... agora, o mundo se reconstitui diferente: mal desço do trem, some o gado, os cavalos, os pássaros-pretos, os anus, os gaviões... ah, se a viagem fosse em vésperas das chuvas, a primeira a sumir da minha paisagem seria a três-potes. Isto quer dizer que esta chuva fina que cai agora em lufadas sobre a Rua Clélia não vai chover lá não, isto é, lá no outro mundo meu. Aqui, estas vozes estrangeiras não são sinal de chuva, apenas indicam-me mundos a que eu talvez nunca chegue. É apenas com os olhos que os vaqueiros compreendem muitas coisas... mas será que compreenderiam essa ingresia toda?! Faço fé que não... A fenomenologia dos ruídos é outra; aqui a noite tem um roaaarrr constante, interrompido às vezes por um surdo silvo, sim, mas da passagem de um ônibus elétrico, não de morcegos. Não haverá galos para espantar assombrações, e se eu ouvir um tuummm forte na madrugada, na certa será uma batida de carros.

A minha vida tem sido e será sempre a impossível captura de um modo de estar, isto é, eu só queria... ara... tudo que eu mais queria era estar inteiro onde eu estou, estar perto de mim... se lá estou, migro para cá numa simples toada que não me sai dos ouvidos [virtuais] que tenho; e se cá estou, viajo para lá, por exemplo, ao som de Bach; foi aqui que eu aprendi a gostar de Bach. De permeio, enviesada, e às vezes atravessada feito espinho na garganta, há uma bucólica cidade perfeita, aquela em que eu nasci... nem vou falar dela agora.

Do entrechoque desses mundos, fiz-me; sei-me vário, inconstante sonhador! Então... sou essa doida falta de ser... e o que fazer? Como posso estar perto de ti, se [invariavelmente] estou longe de mim, se quase nunca sou onde estou? Eu estou sempre on the way... sempre a caminho de ser o que jamais serei! Tu hás de olhar nos meus olhos... conforma-te: nunca poderás saber o que eu não sei se sei... Resta o quê? Resta o corpo — vê se te serve o que há em estoque... Se queres, toma! Ele sabe antes de mim [e de ti] o que mais deseja!

Em tempo: eu nunca mudei, sempre fui assim e até hoje, de ser assim, nunca morri!

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[Penas do Desterro, 19 de setembro de 2007]