canjica de castanha
um dia, um peão-garimpeiro vindo da beira do rio
trouxe um recado para o acampamento
dona maria, a esposa de pernambuco, o beradeiro
convidava-nos a todos para, no domingo
irmos à sua palafita,
para uma canjica de castanha com sua família
lá fomos nós, a princípio meio receosos
mas de qualquer modo
os muitos quilômetros de cansativa caminhada na mata
no dia de descanso
iam valer a pena
pois através das árvores
podia-se ver que o céu estava de um azul dominical
e, apesar do calor, iríamos ver o sol, e o rio
mas o domingo na casa dos beradeiros
foi muito mais que de sol e rio
a começar pela acolhida tão carinhosa
que nos fez sentir, no dia dos cristãos
uma autêntica celebração da solidariedade
daquele casal de pele vincada, marcada
descarnados, mas de sorriso luminoso
e de conversa amistosa e ingênua
igual à conversa de seus dois meninos
depois o ritual de preparação da canjica,
que no sul chamaríamos de curau,
o milho verde no ponto certo
ralado na língua de pirarucu
vertendo o farto sumo amarelo
e, para a surpresa dos forasteiros
o leite a ser usado não era animal
mas era o leite branco da castanha-do-pará
na floresta ela é fresca e prenha de leite
que verte na boca ao se morder a semente túmida
as castanhas, no preparo da canjica
são bem raladas, coadas e prensadas nos punhos e panos
até separar todo o leite da polpa
a canjica de castanha foi um regalo
naquele domingo ensolarado, abençoado
faríamos quantas vezes fosse necessária
a caminhada até a palafita de dona maria
se ela voltasse a nos convidar
para tal sacramento
entre o humano e a mata
Publicado no livro "memórias amazônicas" (2011).