A criança
Poderia ter sido um dia como outro qualquer... Mas era um daqueles dias em que o Destino resolveu transformar em presente o presente, com trocadilhos. Como se tivesse um conta-gotas mágico, lançando sua alquimia dourada por sobre a grande linha do tempo que é a pobre e incolor vida humana.
Fazia uma breve pausa nas minhas andanças, quando avistei uma pequena menina, e rapidamente meu coração transbordou um sentimento paradoxal, este que bem pode distinguir o gênero humano de qualquer outro. Alegria e saudade derramavam-se sem muita culpa em meu colo, escorrendo como podiam para o assoalho do carro. Dor e nostalgia empoçavam-se ao redor de minhas pernas e eu, crédulo, sorri. Diante de meus olhos, uma estudante mirim, de feições orientais, cabelos longos e pretos; a proporção do rosto tão igual, tão assustadoramente igual, que, surpreso, fitei mais e mais. Sua testa, longe de assimétrica, bem evidenciava seus ascendentes chineses. Seu breve sorriso bastou para mostrar um canino ligeiramente à frente dos outros dentes, todos brancos e lindos.
O coração, pouco apertado, batia espirrando, sem direção, lembranças de há muito, muito, adormecidas. Lembrei-me de quando nos conhecemos, de quando nos abraçamos pela primeira vez. Talvez tenha lembrado o dia em que, distraído, me peguei pensando em como seria nosso filho, pouco antes de me dar conta de meus dezessete anos, e de todo o caminho que teria de percorrer até lá.
E um sorriso que mal cabia nos lábios me mostrou, à margem de qualquer dúvida, que ali poderia estar tal criança. Talvez, em uma fração de segundo (tão pequena, que caberiam infinitas destas frações em um mero instante), pensei em sair do carro, gritar "Filha!!!", abraçá-la e beijá-la com a loucura do pai que descobre de chofre sua paternidade, e então retirar a mochila rosa de seu frágil corpinho de oito anos, e levá-la para casa, para juntos boanoitarmos os olhinhos puxados da mamãe. Mas o pensamento evaporou-se, ato contínuo ao que chegou; a gota dourada desfez-se em realidade, e voltei a ser apenas o homem dentro do carro, perdido em minha própria existência.
As chaves do carro inclinaram-se levemente, e de um ronco de motor fui pra bem longe, enquanto minha alma, volátil, decompunha-se no espaço.
O espaço... Você foi um cometa em minha vida. Veio depressa, brilhando e trazendo movimento ao meu céu de estrelas imóveis e distantes. Prometeu brilhar para sempre... prometeu colidir furiosamente em mim, para formarmos um novo corpo celeste... Matéria nova em uma nova órbita, muito mais complexa que aquela que ousei percorrer até então.
Mas não sei se pude ver você partindo e, ao me dar conta da nova escuridão, restou a notícia de que você foi levar sua luz para outro lugar, bem distante do meu mundo. Mundo no qual, em uma certa rua, e em um certo momento, pude ver todo um futuro... Toda uma eternidade, que custou apenas um milésimo de instante para se tornar, apenas... o presente.