a fazenda
a fazenda era isolada do mundo
cercada pela mata
dela só se saía ou chegava
com as avionetas de abastecimento
ou em improváveis viagens de barco pelo rio
que tinha suas cachoeiras e corredeiras
e era muita a distância até algum lugar
que não fosse só ainda mais mata
a fazenda tinha o campo de pouso
construído com homens e enxadas
a avioneta corcoveava
por sobre as suaves ondulações naturais do terreno
tinha um pequeno atracadouro
de um estrado de tábuas
apoiado em grandes tambores de metal flutuantes
tinha o armazém para as trocas e suprimentos
que funcionava como sempre o tinham feito
os entrepostos na selva
escravizando os descuidados
que fizessem ali suas trocas e compras
pois que não haveria nunca como saldar as dívidas
do custo escorchante das ferramentas, utensílios e alimentos
contra o valor aviltante atribuído aos produtos da mata
tinha a oficina do mecânico
que estivera por uma semana
casado com a puta voadora
era uma oficina precária
mas ali se fazia continuarem funcionando
as serras de madeira, os motores de popa,
os geradores, as bombas d'água, os rádios de pilha
tinha a serraria que desdobrava as toras em tábuas e vigas
tinha algumas poucas casas de madeira
numa delas moravam o capataz e sua família
nela ficava a estação de radioamador para falar com o mundo
mas só quando as rabugentas condições atmosféricas deixavam,
outra era o alojamento
onde ficavam os forasteiros e o mecânico
dormíamos em cama com colchão
os mosquitos afastados com a espiral verde que queimava
as outras casas eram de famílias e dos peões
a fazenda tinha seus atrativos
o mergulho das crianças no rio
a pelada de futebol
a música dos secos & molhados na caída da noite
o pôr do sol esplendoroso no céu que se podia ver
o jogo de cacheta entre os forasteiros
as notícias do mundo escutadas nas ondas curtas
do hesitante rádio de pilha
e a iguaria feita com o leite em pó
misturado com açúcar cristal e um pouco d'água
que abrandava a gula aguçada
com a lembrança da abundância das gulodices da cidade
a fazenda encarnava os desejos inalcançáveis
quando se estava nela
lembrava-se mais dos confortos da cidade
e dos convívios que não se chegava a consumar
e ansiava-se voltar logo para a mata
para apressar a conclusão dos trabalhos
que absorviam e distraíam
e quando se estava embrenhado
às vezes sonhava-se com aquelas meias ilusões e confortos
que desfrutávamos na fazenda
Publicado no livro "memórias amazônicas" (2011).