canoeiro

nestor é o bugre domesticado canoeiro

os peões brancos lhe têm grande respeito

dizem que é pela domesticação

mas logo se percebe

que é por muitas outras coisas

indizíveis

ele se veste como os brancos

camisa, calça, botina

chapéu de palha de aba estreita

faca longa de lâmina larga na bainha de couro

e também fuma os mesmos cigarros

de palha de milho e fumo de corda picado

o que mais o distingue dos peões garimpeiros

além da cor da pele e do liso cabelo negro brilhante

é que se cala enquanto os outros falam

e quando fala, não é das coisas da cidade

das raparigas, do café da manhã no hotel

com pão, batatinha e ovos

mas é para mostrar as coisas da floresta

que é preciso aprender a ver

para aprender a sobreviver

tal como a urutu escondida atrás do tronco caído

bem onde se ia pisar

mas nestor mostrava mesmo

que era filho do lugar

quando estava no seu posto na proa da canoa

apoiado sobre os joelhos

o cigarro de palha na boca

a faca comprida atravessada no cinto às costas

o olhar atento, achando o caminho na água do rio

o remo índio largo

feito de uma única tábua nativa bem esculpida

parecia acariciar a água, suavemente

enquanto se murmuravam

confidenciando-se o bom caminho

encontrando o equilíbrio perfeito

entre os galhos das árvores, as pedras

as corredeiras e os remoinhos

nesses momentos

os brancos sentados atrás na canoa

calavam-se

sentiam que existia ali uma comunhão

entre o rio, a mata, o índio

estranha aos brancos

Publicado no livro "memórias amazônicas" (2011).