Redenção

Chove lá fora. Há semanas. Sandro parece irrequieto em seu canto, esbravejando contra tudo e todos dentro de casa. Ao que parece, o mero vislumbre de água vertendo do céu ao acordar, situação inarredável nos últimos tempos, fê-lo chegar ao seu limite. Mal saiu da cama, e mesmo quando se retirou dela para iniciar o dia, preferiu abortar a missão e dá-la por finalizada ali mesmo, tornando seu corpo ao único lugar no mundo que lhe parece aconchegante.

- “Sinceramente, se é para viver nesta condição, prefiro nem viver.”

Logo pela manhã, Sandro já é tomado por estes pensamentos. Impossibilitado de realizar qualquer atividade para além de sua morada mais uma vez, reflexo do verdadeiro dilúvio que tomou conta de sua cidade, mostra-se indisposto até mesmo para dedicar-se aos pequenos prazeres caseiros. Isso porque, convivendo com tamanho volume pluviométrico, hoje sua energia parece ter chegado ao fim, percebendo-se sem ânimo para sequer colocar seu corpo para fora da cama. A melancolia, que já estava aí desde o alvorecer tempestuoso, enfim tornou-se dona do seu ser.

Com isso, vem a raiva. Verdadeira fúria que se apossa de suas elucubrações, metralhando o mundo a sua volta e estilhaçando qualquer esperança de um porvir amistoso, já que tudo vai sendo contaminado, gradativamente, pelo estado de consciência sórdido que responde pelo nome de Sandro agora. Dada tal identificação, os retumbantes trovões externos são introjetados em sua mente, disparando revelações das quais, em tempos amenos, fugira, e eletrocutando falsas expectativas que outrora nutrira, não deixando espaço para uma fagulha sequer de prosperidade e otimismo. O resultado, diante deste cenário, é previsível: o cérebro de Sandro entra em curto-circuito.

- “Como assim chego a esta condição apenas pela constância do mal tempo?”

Sandro, ao conseguir ponderar sobre a situação, clareando vagarosamente seu raciocínio, fica estarrecido com sua extrema vulnerabilidade. Não consegue aceitar como sua disposição à vida pode ser facilmente abolida a partir de meras mudanças climáticas. Afinal, seu padrão de comportamento é evidente: o quedar contínuo da chuva leva ao arrefecimento geral de seu vigor. Este, de modo inversamente proporcional aos bueiros, vai secando, secando, secando, até o ponto em que a hidrelétrica interna para de funcionar pela ausência de força motriz. Daí o completo pane no sistema torna-se uma inexorável realidade.

Chegar a esta verdade é um soco no estômago de Sandro. Boquiaberto e incrédulo, não consegue conformar-se a sua reação subjetiva, que considera tão absurda e desproporcional, mas, outrossim, incontrolável. Goste ou não, esta é a dinâmica de seu organismo. Todavia, projetar-se no futuro tendo consecutivos colapsos em razão de insignificantes motivos lhe parece demais, um exagero sem precedentes, que pode colocar tudo à ruína. Imagina-se, então, em diversos ambientes onde este comportamento destroçaria toda e qualquer perspectiva de avanço, sucumbindo à própria imaginação.

- “Que droga, não há nada que eu possa fazer para mudar isto.”

É neste exato momento, quando Sandro, no ápice de sua angústia, vendo-se como um ser frágil diante da implacável chuva, chega a uma compreensão transcendental: não adianta lutar contra a natureza, em si ou alheia. Indomável, hegemônica e primordial, age sem ver a quem, de uma maneira estritamente impessoal. Seu poder é tamanho que nem todas as armas humanas juntas seriam capazes de dobra-la a nossa vontade, tornando-a submissa a nossos caprichos e fazendo dela uma utilidade. Assim, quanto maior a resistência e o desejo de dominação, maior a derrota e o peso da sofreguidão. Convencido, Sandro percebe que não há paz a quem segue por este caminho.

- “Se não posso contra ela, a saída só pode ser esta: união.”

Anuindo diante de sua participação em um modelo mais amplo, que o contém, mas é incontido, Sandro entrega-se, decidindo harmonizar-se com aquilo que está para além de seu poder, por mais que o afete de modo tão invasivo. Assim, ciente da inevitabilidade das oscilações climáticas, e, por conseguinte, de seu próprio humor, íntima e surpreendentemente relacionado ao mundo exterior, Sandro decide parar de vociferar contra tudo e todos.

Em contrapartida, é tomado por um súbito ímpeto de correr em direção ao quintal de casa. Lá, sem sequer pensar, estende os braços completamente e fecha os olhos, deixando a água encharcar suas roupas e infiltrar-se em cada espaço de seu corpo. A chuva aperta, e não demora muito para que as gotas se misturem as suas lágrimas, desvelando um choro de alívio e assombro, simultaneamente. A experiência é tão intensa que ele não consegue se conter, deitando-se no chão e permitindo-se ser tragado pelo oceano ao seu redor. Sandro nunca se sentiu tão vivo em toda a sua vida.

Cessado o combate interno contra o inevitável, sente como se estivesse respirando pela primeira vez. O mundo parece parar, ao passo que Sandro continua extático, notando cada toque gotejante estalar em sua pele. Almejando aproveitar ao máximo este momento, coloca sua língua para fora, saboreando o frescor desta água que inunda cada vez mais seu corpo, sua mente e seu espírito. E disso, exsurge a revelação: jamais imaginara que uma sensação de onipotência viria da aceitação de sua impotência.

De repente, após dias a fio, eis que para de chover. Bem ao longe, em meio às nuvens cinzentas desfalecentes, o sol enfim resplandece, iluminando o extenso céu. Ao abrir os olhos, renovado, esta é a paisagem que Sandro vê diante de si: o despertar luminescente.