Fogo e água
Não, não fomos feitos um para o outro: fomos feitos, sim, um pelo outro, para que possamos navegar em águas paralelas, o tempo a permear nossa proximidade, e a uma distância segura de nós. A água que dá vida à madeira, o fogo que extrai dela a umidade.
Eu exponho, você internaliza; eu me escancaro, você se fecha. Sou apaixonada, atabalhoada, apressada; você contido, conciso, comedido. Enquanto você é intuição, eu sou paixão; vivo cada momento como se fosse o último, você economiza cada segundo como se fosse o único. Você in, eu out. Você yin, eu yang.
Somos fogo e água; eu poderia até fervê-lo, se você se deixasse ebulir, mas não: você se preserva para me apagar no final.
Meu calor é seu, minha energia é sua, verto água demais pelo seu oceano para acabar uma fria brasa solitária a desconfiar da vida, minha insegurança de labareda fraca teme pelos respingos da sua força interna, profundidade, o escuro do lago impenetrável que me atrai para dentro como um feitiço. Já me perdi no seu líquido impossível, já refiz minha brasa apesar da umidade, acendo e apago ao sabor das suas ondas, à mercê de sua maré. Não vejo, tento iluminar com tênue luz alguns passos à frente. Mas não mais afundarei de novo, areia movediça, poço sem fundo, lagoa dormente de inofensiva aparência.
Preciso do ar mas consumo todo o oxigênio. O ambiente talvez fique irrespirável. Morreremos todos, asfixiados ou afogados. Sobrará um carvão úmido, que as próximas gerações interpretarão como um sinal de vida inteligente – não, eles não vão saber da tormenta, ninguém sabe hoje, ninguém saberá amanhã. Ficará entre nós, perdão, apenas comigo, e escrita aqui, para que aqueles que porventura lerem também de nada saibam.