Morri

Puseram meu coração numa balança, que ficou machucada, e então dissecaram o órgão, lá não havia nada.

Planeara-se uma cirurgia, um rápido transplante, para remoção da agonia que me mordia a todo instante. Um bisturi de amor foi-me usado para alargar minha sensibilidade, de modo a haver mais espaço e entrega à serenidade.

Mas não se ama dum dia pro outro, nem do outro para dum. Ama-se um dia atrás do outro ou num dia nenhum. O médico estranho sabia disso, só quis provar o seu valor. Por causa do seu ego, não quis cagar na própria reputação: "masturbou-se" com o enredo.

Era muita luz direccionada ao meu peito e corpos vestidos de batas cor de relva. Com certeza tinham todos esperança, só não sabiam da imunidade gigante.

Cresci vazio e sem dó, nem palavras, nem acções. Nada disso aliciou-me tanto para ter dois corações. A operação levou alguns anos, a equipa toda envelheceu e, de tão mergulhado na anestesia, achava já ter chegado ao céu.

Que céu existiria para mim, descrente, com o âmago gelado, que não sabia se doar nem aceitar ser amado?

Sentia-me num clima de inverno, a tensão convidava o verão, e o inferno, tão branco, cheio de escuridão.

O efeito começou a manifestar-se, o batimento cardíaco voltou. Como algo mesmo não me quis ver a amar, de uma vez por todas, o coração parou.

Widralino
Enviado por Widralino em 24/02/2019
Reeditado em 03/07/2020
Código do texto: T6582980
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