No Charco da Dor
Fim de tarde e chove em Salvador. As partículas vêm de lá do horizonte, não estagnam e não regressam, tornam toda vista brumosa, elas vêm varrendo tudo. Encontram as casas, os carros, os edifícios, as plantas, coisas que pulam, que cortam, que pesam, que morrem, encontram tudo que é gente. Leves gotículas tocam meu corpo, é início de uma avistada chuva, elas deslizam em minha pele dissolvendo o ânimo, um ânimo não só meu, um ânimo de todos outros que se resguardam em suas casas, deixando-me sob completa solidão. E é por estar só que eu choro. Vejo-me no medo que tenho desde infância; estar só. Mas esta é dor que não dura, logo a chuva dissolve o choro, espalhando-o sobre meu corpo e levando-o embora. Sem direito ao choro, vejo partir o último resquício de felicidade que havia. Sem a felicidade, perco, também, a esperança. Esperança, coisa tão frágil, frágil feito o pulso de um feto crescendo no corpo da mulher amada, a mulher que pensei um dia ser feliz comigo, e não foi, e se foi, feito água de chuva a escorrer aos grotões. Foram-se também os sonhos, as lembranças de sonhos, o desejo por sonhos. Foram-se as palavras de fé, as de carinho, as de amor. O amor? Dissolveu-se o amor. A chuva levou-me tudo. Tão corrosiva e impetuosa a me rasgar a pele, tão verdadeira a me tirar a voz. E, então, monstruei. Monstruosamente pavoroso. Os olhos fizeram-se rubros, tão rubros quanto a cor do desejo que carrego, desejo impuro, subversivo, humanamente inumano. Cancros negros e grossos de rejeição arrancam-se junto a carne, caem podres ao chão a contaminar tudo que é pé. Charcos e mais charcos de medo deságuam aquosos e acídicos sobre a carne exposta, será um alívio, meu Deus? Grudados à língua, há versos, e eles saltam ao urro de uma velha canção. Em meu sexo cresce um verbo, no futuro do pretérito, medonho, do qual se evitam sua pronúncia. Pelos braços e pernas crescem bétulas, begônias, jasmins. Todas flores do mal. Tento reconhecer-me na água, mas não há água, não água pura. Procuro os olhos de gente, mas não há gente, toda gente se foi. Restou-me apenas eu, eu, desnudo naquilo que sou. Um monstro. De onde caem versos, cancros e charcos. É fim de tarde e em Salvador chove. Chove como forma de um choro calado de Deus, como ferida que se dói e não se diz. Chove, pois, é desta face, ou melhor, monstruosidade, que se expele hemorragia. Um sangue triste, incolor; ao qual nomeiam "poesia".