o que é, o que é?
You'll Never Walk Alone, canção sessentista, de Gerry & The Pacemakers, é um segundo hino de dois clubes que se enfrentaram em abril, pela Europa League, Borussia Dortmund e Liverpool. Foi um grande momento, não só do esporte, quando as duas torcidas cantaram, juntas, você nunca caminhará sozinho, antes da partida começar. A música, em geral, e sem importância de estilo, pode exercer uma estupenda força quando nos une, faz, e nos dá, sentido (tal frase até caberia como legenda no registro; quem puder, confira, o vídeo está disponível por aí).
Dias depois da partida, uma garota puxou o assunto comigo e acabei dizendo que levávamos 7x1, também, no quesito torcida. Pois ficar cantando Brasil, Brasil, olê, olê, olá, ou lê, lê, leô, não incentiva ninguém e irrita os próprios torcedores se o jogo não agradar. Falei mal do eu sou brasileiro, com muito orgulho... E a menina se revoltou. Ela frequenta, muito, ginásios, estádios... Entendo que tem um certo vício em eventos esportivos. Contou ter chorado várias vezes ao cantar tais versos com a torcida. Depois esgotou comigo o estoque de palavrões, largou o café, bateu a porta, enfim...
Ficou brava mesmo.
Ela trabalhou, não sei bem o que fez lá, mas trabalhou, na Rio 2016. Uma semana olímpica passou, ela acabou ligando aqui. O eu sou brasileiro não estava dando muito certo nos Jogos. Ela perguntou se eu poderia inventar uma segunda estrofe, meio que como uma condição para fazer as pazes (!). Pedi uns minutos. Porém, ligou de volta, sem ter esperado nem a metade do tempo:
- Pronto?
Um carro velho, entupido de gente gritando, passou na frente de casa. Então, lembrei da Melissa, prima de um colega, o Gustavo. Em alguns domingos de nossa infância, o pai dela nos dava carona, numa Caravan, que mantinha impecável, uma belezura mesmo, para jogarmos futebol contra um time do Uberaba, que era um bairro um tanto distante. Além da Caravan, ele tinha uma fita cassete do Gonzaguinha, que acabamos decorando toda. Éramos muito mais do rock & roll, mas gostávamos de ouvir pai e filha cantando juntos, ou de ouvir as histórias que o Seu Alberto contava sobre as letras das músicas ou sobre o seu cantor e compositor. Creio que foram uns seis jogos lá no Uberaba. Vencemos todos. E depois das vitórias, íamos para uma panificadora da região, onde comprávamos gasosas de framboesa, pão com mortadela, e sentávamos no meio-fio para lanchar, lembrar das jogadas, rir... Resumindo, eram domingos perfeitos.
Até que a Melissa teve meningite. Ficou muito mal, passou uns meses internada. Foi difícil para todos. Demos uma parada no futebol, até que um doido, o Cachorrão, ex-vizinho nosso, pedalou uns vinte quilômetros para nos desafiar para um jogo contra o time do novo bairro dele, o "Tubarões". Nosso time nem tinha um nome. Ou chamavam de "Time do Zé" (Zé era o senhor que nos "treinava" e que guardava os troféus em casa), ou de "TRINDA", que vinha do nome da nossa vila, Trindade. Tubarões x TRINDA: foi assim que saiu em um anúncio em um jornalzinho distribuído por um candidato a vereador de lá, que nos deu um jogo de camisas. E que pediu de volta, no final da partida.
Começamos perdendo: 3x0, em quinze minutos. Errávamos todos os passes, e os pais dos garotos do outro time, na verdade, todo mundo, até o candidato, tiravam o maior sarro, ou mandavam altos palavrões contra nós. O Gustavo quase saiu no tapa com um piá que chamavam de Rambinho. Nosso goleiro, o Véio, já estava querendo convencer o pessoal a ir embora. O Augusto, lateral direito, também estava querendo dar umas bordoadas em alguém que havia cuspido nele. O Sêco, nosso centroavante, xingava o juíz e as filhas de um barbudo bêbado, que ficavam torcendo atrás de um dos gols.
Era humilhante. E eu, que não gosto do calor, ficava ainda mais louco com aquele sol, que era de verão, das onze. Quando quase fizeram o quarto gol, lembro que pus as mãos nos joelhos e me imaginei pulando em um rio e jurando nunca mais jogar bola.
Foi quando um verdureiro parou sua kombi ao lado do campo para ver o jogo. Desceu dela, descascando uma banana e, antes da primeira mordida, se esticou para dentro do carro e ligou o som:
viver
e não ter a vergonha
de ser feliz
cantar e cantar e cantar
Nunca tínhamos ouvido aquela música em um volume tão alto. Nós nos olhávamos, corações a mil, tomados por dezenas de sentimentos. O Véio, que era o mais velho mesmo, já estava com uns 15 anos, se agachou e começou a chorar. O Zué, nosso volante, meio que um capitão, foi para uma dividida e mandou um chute, que foi uma bomba. Foi sem querer, mas acertou o travessão. Então, o Gustavo gritou:
MELISSA!
Não me recordo direito das jogadas, nem dos gols, mesmo tendo feito uns quatro. O primeiro tempo terminou com 6x4 para nós. A partida foi encerrada aos vinte do segundo tempo, quando vencíamos por 10x4. O goleiro deles reclamou ter quebrado a mão numa defesa e, como o Cachorrão não quis ir para o gol, decidiram parar. Foi um longo silêncio, só quebrado pelo Rambinho, que veio nos cumprimentar e dizer o desculpe qualquer coisa. E, pelo candidato, que nos arrancava camisa por camisa, afirmando que havia nos dado as erradas, que outro dia nos mandaria as corretas, blablablá. Fomos saindo do campo para beber água e pegar nossas mochilas, enquanto o silêncio foi se refazendo. Os adversários iam embora rapidinho, um ou outro dava uma olhadinha para trás. Ficaram meio assustados. Nós também. Então, quando já caminhávamos pela rua, um senhor bem pequeno, com um chapéu de palha, quase maior que ele, veio até mim e disse:
- Ô, dez, pra eu colocar no jornalzinho novo: o nome do time de vocês é "TRINDA" ou é "MELISSA"?
E eu respondi que era Melissa.
Começamos a sorrir, mas ainda ficamos pensativos por um bom tempo, antes de voltarmos a agir como os pré-adolescentes de sempre.
O Cachorrão, que nos acompanhou de bike até o ponto de ônibus, reclamava montes do fato de ter se mudado. Ele dizia vocês são de fé, vocês são de fé, enquanto se preparava para confessar que não conseguiu mais jogar depois de ouvir a canção e perceber que não estava mais no nosso time.
E estávamos para entrar no ônibus, quando o verdureiro passou e, buzinando para nós, gritou Melissa! pelos falantes da kombi.
A garota Melissa, ficou bem, sem sequelas, pelo que sei. Já, o time, acabou um tempo depois. No entanto, todos nós, seguimos mudados por entendermos o quanto a música pode influenciar nossas vontades e decisões.
- Pronto. A segunda estrofe que você queria ficou assim:
eu
nunca desisto
enfrento tudo
aonde eu for
Eu me senti ridículo cantando tal coisa. Tinha que ser algo simples, que não fugisse do que já existia. Esperei pelos palavrões. Todavia, ela adorou. Disse exageros, que iria mandar para uma centena de conhecidos, que ia combinar com a torcida do vôlei, que mandaria para a amiga dela que trabalha na tevê... Fez até com que eu mesmo mandasse para algumas pessoas, o que foi ridículo também, pois ninguém deu bola, ainda mais por partir de mim, crítico do "torcer" em vigor até então. E o eu sou brasileiro estaria dando azar mesmo, conforme manifestações que começaram naqueles dias.
You'll never walk alone, cantam os amantes do Borussia Dortmund, do Liverpool, e, em tempo, também, os do Celtic. Você nunca caminhará sozinho é tão marcante para eles, como aqui seria se nossos torcedores soubessem da beleza de ser um eterno aprendiz, por exemplo. Se não trocassem a oportunidade de transformar momentos em histórias, por piadas descartáveis. E, ainda, ignorar o quanto nos esforçamos para não sermos mais fortes.
Muitos ainda perguntam o porquê dos 7x1.
Fiquemos com a pureza das respostas das crianças da música do Gonzaguinha. O título dela, o que é, o que é? como se fosse uma charada, só ilustra ainda mais a constatação de que até a solidão pode nos deixar, mas a música, e tudo que nos faz fazermos parte dela, não.
You'll Never Walk Alone, canção sessentista, de Gerry & The Pacemakers, é um segundo hino de dois clubes que se enfrentaram em abril, pela Europa League, Borussia Dortmund e Liverpool. Foi um grande momento, não só do esporte, quando as duas torcidas cantaram, juntas, você nunca caminhará sozinho, antes da partida começar. A música, em geral, e sem importância de estilo, pode exercer uma estupenda força quando nos une, faz, e nos dá, sentido (tal frase até caberia como legenda no registro; quem puder, confira, o vídeo está disponível por aí).
Dias depois da partida, uma garota puxou o assunto comigo e acabei dizendo que levávamos 7x1, também, no quesito torcida. Pois ficar cantando Brasil, Brasil, olê, olê, olá, ou lê, lê, leô, não incentiva ninguém e irrita os próprios torcedores se o jogo não agradar. Falei mal do eu sou brasileiro, com muito orgulho... E a menina se revoltou. Ela frequenta, muito, ginásios, estádios... Entendo que tem um certo vício em eventos esportivos. Contou ter chorado várias vezes ao cantar tais versos com a torcida. Depois esgotou comigo o estoque de palavrões, largou o café, bateu a porta, enfim...
Ficou brava mesmo.
Ela trabalhou, não sei bem o que fez lá, mas trabalhou, na Rio 2016. Uma semana olímpica passou, ela acabou ligando aqui. O eu sou brasileiro não estava dando muito certo nos Jogos. Ela perguntou se eu poderia inventar uma segunda estrofe, meio que como uma condição para fazer as pazes (!). Pedi uns minutos. Porém, ligou de volta, sem ter esperado nem a metade do tempo:
- Pronto?
Um carro velho, entupido de gente gritando, passou na frente de casa. Então, lembrei da Melissa, prima de um colega, o Gustavo. Em alguns domingos de nossa infância, o pai dela nos dava carona, numa Caravan, que mantinha impecável, uma belezura mesmo, para jogarmos futebol contra um time do Uberaba, que era um bairro um tanto distante. Além da Caravan, ele tinha uma fita cassete do Gonzaguinha, que acabamos decorando toda. Éramos muito mais do rock & roll, mas gostávamos de ouvir pai e filha cantando juntos, ou de ouvir as histórias que o Seu Alberto contava sobre as letras das músicas ou sobre o seu cantor e compositor. Creio que foram uns seis jogos lá no Uberaba. Vencemos todos. E depois das vitórias, íamos para uma panificadora da região, onde comprávamos gasosas de framboesa, pão com mortadela, e sentávamos no meio-fio para lanchar, lembrar das jogadas, rir... Resumindo, eram domingos perfeitos.
Até que a Melissa teve meningite. Ficou muito mal, passou uns meses internada. Foi difícil para todos. Demos uma parada no futebol, até que um doido, o Cachorrão, ex-vizinho nosso, pedalou uns vinte quilômetros para nos desafiar para um jogo contra o time do novo bairro dele, o "Tubarões". Nosso time nem tinha um nome. Ou chamavam de "Time do Zé" (Zé era o senhor que nos "treinava" e que guardava os troféus em casa), ou de "TRINDA", que vinha do nome da nossa vila, Trindade. Tubarões x TRINDA: foi assim que saiu em um anúncio em um jornalzinho distribuído por um candidato a vereador de lá, que nos deu um jogo de camisas. E que pediu de volta, no final da partida.
Começamos perdendo: 3x0, em quinze minutos. Errávamos todos os passes, e os pais dos garotos do outro time, na verdade, todo mundo, até o candidato, tiravam o maior sarro, ou mandavam altos palavrões contra nós. O Gustavo quase saiu no tapa com um piá que chamavam de Rambinho. Nosso goleiro, o Véio, já estava querendo convencer o pessoal a ir embora. O Augusto, lateral direito, também estava querendo dar umas bordoadas em alguém que havia cuspido nele. O Sêco, nosso centroavante, xingava o juíz e as filhas de um barbudo bêbado, que ficavam torcendo atrás de um dos gols.
Era humilhante. E eu, que não gosto do calor, ficava ainda mais louco com aquele sol, que era de verão, das onze. Quando quase fizeram o quarto gol, lembro que pus as mãos nos joelhos e me imaginei pulando em um rio e jurando nunca mais jogar bola.
Foi quando um verdureiro parou sua kombi ao lado do campo para ver o jogo. Desceu dela, descascando uma banana e, antes da primeira mordida, se esticou para dentro do carro e ligou o som:
viver
e não ter a vergonha
de ser feliz
cantar e cantar e cantar
Nunca tínhamos ouvido aquela música em um volume tão alto. Nós nos olhávamos, corações a mil, tomados por dezenas de sentimentos. O Véio, que era o mais velho mesmo, já estava com uns 15 anos, se agachou e começou a chorar. O Zué, nosso volante, meio que um capitão, foi para uma dividida e mandou um chute, que foi uma bomba. Foi sem querer, mas acertou o travessão. Então, o Gustavo gritou:
MELISSA!
Não me recordo direito das jogadas, nem dos gols, mesmo tendo feito uns quatro. O primeiro tempo terminou com 6x4 para nós. A partida foi encerrada aos vinte do segundo tempo, quando vencíamos por 10x4. O goleiro deles reclamou ter quebrado a mão numa defesa e, como o Cachorrão não quis ir para o gol, decidiram parar. Foi um longo silêncio, só quebrado pelo Rambinho, que veio nos cumprimentar e dizer o desculpe qualquer coisa. E, pelo candidato, que nos arrancava camisa por camisa, afirmando que havia nos dado as erradas, que outro dia nos mandaria as corretas, blablablá. Fomos saindo do campo para beber água e pegar nossas mochilas, enquanto o silêncio foi se refazendo. Os adversários iam embora rapidinho, um ou outro dava uma olhadinha para trás. Ficaram meio assustados. Nós também. Então, quando já caminhávamos pela rua, um senhor bem pequeno, com um chapéu de palha, quase maior que ele, veio até mim e disse:
- Ô, dez, pra eu colocar no jornalzinho novo: o nome do time de vocês é "TRINDA" ou é "MELISSA"?
E eu respondi que era Melissa.
Começamos a sorrir, mas ainda ficamos pensativos por um bom tempo, antes de voltarmos a agir como os pré-adolescentes de sempre.
O Cachorrão, que nos acompanhou de bike até o ponto de ônibus, reclamava montes do fato de ter se mudado. Ele dizia vocês são de fé, vocês são de fé, enquanto se preparava para confessar que não conseguiu mais jogar depois de ouvir a canção e perceber que não estava mais no nosso time.
E estávamos para entrar no ônibus, quando o verdureiro passou e, buzinando para nós, gritou Melissa! pelos falantes da kombi.
A garota Melissa, ficou bem, sem sequelas, pelo que sei. Já, o time, acabou um tempo depois. No entanto, todos nós, seguimos mudados por entendermos o quanto a música pode influenciar nossas vontades e decisões.
- Pronto. A segunda estrofe que você queria ficou assim:
eu
nunca desisto
enfrento tudo
aonde eu for
Eu me senti ridículo cantando tal coisa. Tinha que ser algo simples, que não fugisse do que já existia. Esperei pelos palavrões. Todavia, ela adorou. Disse exageros, que iria mandar para uma centena de conhecidos, que ia combinar com a torcida do vôlei, que mandaria para a amiga dela que trabalha na tevê... Fez até com que eu mesmo mandasse para algumas pessoas, o que foi ridículo também, pois ninguém deu bola, ainda mais por partir de mim, crítico do "torcer" em vigor até então. E o eu sou brasileiro estaria dando azar mesmo, conforme manifestações que começaram naqueles dias.
You'll never walk alone, cantam os amantes do Borussia Dortmund, do Liverpool, e, em tempo, também, os do Celtic. Você nunca caminhará sozinho é tão marcante para eles, como aqui seria se nossos torcedores soubessem da beleza de ser um eterno aprendiz, por exemplo. Se não trocassem a oportunidade de transformar momentos em histórias, por piadas descartáveis. E, ainda, ignorar o quanto nos esforçamos para não sermos mais fortes.
Muitos ainda perguntam o porquê dos 7x1.
Fiquemos com a pureza das respostas das crianças da música do Gonzaguinha. O título dela, o que é, o que é? como se fosse uma charada, só ilustra ainda mais a constatação de que até a solidão pode nos deixar, mas a música, e tudo que nos faz fazermos parte dela, não.
30/9/2016