Cá de armas.

Desde cedo na vida escutei falar em amor

Com dor, mágoa, cobrança, manipulação e outros abusos causados e sofridos em nome dele.

Na primeira infância eu nem sabia que ele estava ali, mas estava, em algum lugar no meio das traições e abandonos, ele me sorria toda vez que eu acordava e ia dormir, com uma beijo macabro de pesadelos e projeções astrais,um dia após o outro, mas a segurança existia, existiu.

Na segunda infância, já tinha escutado que ele estava aí,e no meio de tantas frases e fios havia uma que repercute até hoje em minha mente. "Tudo está dentro de ti, tenha responsabilidade e assuma tudo o que acontece com você"

Eu tinha 10 anos de idade, em meio a pioneira das crises, tive que me conter,tive que ser "forte" e desde então a dor em meus ombros nunca mais passou, joguei pesares de outrem em mim, pois se me afeta é culpa minha,não é?

Quando comecei a explorar mais intensamente a vida, a segurança já se havia ido há muito tempo, conheci um pouco de alívio e alguém que me oferecesse ajuda com a bagagem. Aceitei e segui por um tempo caminhando feliz,como se felicidade fosse carregamento compartilhado de cruz. Chegando no final do caminho fui cobrada pela viagem de 2 anos que foi acumulando a cada confissão e parcerias. Eu não tinha dinheiro, não tinha nada,então trabalhei para pagar a dívida, a minha (que já era múltipla) e mais outras duas. "Sim,eu mereço tudo que acontece comigo e assumo a responsabilidade". Eram 6 cruzes até então.

Mais tardar prometi a mim mesma solidão no caminho, "equilíbrio!" pensei, e cada ser que se aproximava me desviava  ferozmente,com toda aquela "força" que achei que tinha.

Não deu, caí em meus joelhos,esperei o máximo possível o afastamento natural de quem caminha pra frente. Parou, me esperou, e toda a culpa e desespero se apossaram de mim. Será que aqui é enfim pra onde devo ir? Diz que me ama, mas qual amor era aquele? Era só amor mesmo mas gato escaldado tem medo de água fria e no ping pong da vida, relaxei, joguei o fardo em cima dele,tudinho, cada gota de suor que eu tinha derramado. Mas era amor,não era?

Ele não aguentou,assim como eu não aguentaria se não soubesse da responsabilidade exclusiva que tenho com o meu peso, jogou tudo pro ar e saiu correndo. Ali pareceu o fim, a morte, e de uma certa forma foi mesmo, tentei adiantar o fim dos tempos,mas o cosmos sabe o que faz e ele vibra em amor. Segui caminhando, eram agora 7 cruzes.

Na areia da praia, já adulta e com forte convicção de que ele,o amor, não estava ali. Distribui sorrisos vazios, promessas vazias,repetições de padrões totalmente compreensíveis mas nunca justificáveis,a coisa da responsabilidade,lembra? E ali a encontrei, me fiz de leve e falava o tempo todo pra ela não perceber o tanto de madeira que tinha em mim, eventualmente ela percebeu. "Isso é roubo,Laura" e eu disse "não,isso é amor". Ela tentou e tentou me fazer largar aquelas vigas, "o amor não pesa", mas como, depois de muito tempo pensando que 2+2=5, eu poderia achar que era 4?

Na defensiva, apontei para o seu peso, talvez inveja,talvez paixão mas com certeza "amor". E por "amor" saí correndo,a deixando sozinha do nada no nada. "Tudo que me afeta é culpa minha", fingi que não afetou então dessa vez não era. Alívio. Continuavam 7 cruzes.

No caminho,sempre pensava naquela primeira sensação de estabilidade e conforto que na verdade nunca existiu, com saudades de uma mentira ou do "amor" fui me aproximando lentamente de uma cabana, e o que eu vi me desestabilizou totalmente, era uma cabana feita de cruzes! Montes delas, de vários tamanhos e estilos. Como uma cabana tão pequena suportava tantas cruzes? Bati e me abriu a porta o "desamor", me convidou para entrar e me ofereceu uma massagem. Larguei tudo ali fora, e com a brutalidade que me constituía, sentei e recebi seus carinhos, seu também "amor". E como foi bom, meu deus, mesmo sendo um pouco lúgubre foi uma sombra no caminho pra descansar e seguir viagem. Quando quis ir não deixou, outra massagem,outra carícia,outra experiência extra sensorial através da carne. Fui ficando,me acostumando e contando das minhas dores nos ombros, me contou das dela, que tinha construído tudo isso sozinha por não conseguir carregar, ergueu sua morada na dor dos outros e nós ali moramos por algum tempo.

De fato,a cabana era muito maior do que parecia de fora,na verdade, era imensa e essa tecnologia me fascinou,quis saber mais,quis saber tudo, como podia uma cabana tão pequena ser tão gigante por dentro? Interminável eu diria,túneis e mais túneis,labirintos,universos, tudo protegido por uma carcaça de cruzes.

Madeira perece, e as frestas onde entrava luz foram se mostrando, a convidei para dar uma volta lá fora e como um bicho assustado se agarrou a mim fortemente. Ao ver o sol,o brilho,o frescor,seu cabelo e seu coração automaticamente ficaram mais avermelhados,sem dizer uma palavra, é claro, a possibilidade de viver longe daquele buraco a encantou como nunca antes.

Voltamos e a cada passeio ela queria ficar mais,explorar mais, achei lindo mas anoitecia e o medo tomou conta de mim. "Vamos voltar pra casa, é perigoso andar por aqui de noite" eu disse.

Aos poucos aprendeu a protestar, a se perguntar e a revolta foi crescendo. Foi de afastando,não queria mais "amor", queria amor de verdade.

Eu aprendi desde nova que 2+2=5, aprendi a "amar" com culpa, aprendi que o sol só machuca a pele,nunca tinha ouvido falar de vitamina D, aprendi a sair correndo e ver outros correr,meu primeiro idioma foi o "amor",como eu vou fazer agora pra aprender essa outra língua e matemática? Já sou adulta,melhor se fosse criança, onde lá atrás eu poderia ter sido instruída a não ser destruída e a não destruir,que amor não tem aspas, não prende,não cobra,não manipula, não fala bonito, não atende a todas as nossas necessidades egoicas, não carrega o peso de ninguém, e principalmente não promete nada,nada se não o puro e simples amor.

Agora olho toda essa madeira, quero deixa-la para trás, quero arrancar do meu âmago a falsa verdade de que isso é carinho, eu só quero a oportunidade de aprender de novo,de saber usar bem as palavras.

Se o amor vai me fazer sofrer até eu aceitar a leveza,que seja,só peço paciência a deus, estou me reeducando agora.

Facas não fazem barulho
Enviado por Facas não fazem barulho em 31/01/2019
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