[Dos Claros da Memória]

Por vezes, submeto o mundo exterior à minha [sempre misteriosa] interioridade fabricadora de significações - escavo fundo, desço aos infernos, volto cheio de palavras, pois são muitos os demônios [os meus] que falam comigo; nem todos foram descritos por Dante! Eu volteio duros mourões epicêntricos, mordo a corrente que me prende, repiso o limpeiro que eu faço até a incompreensão, desfeita em palavras, virar fino pó!

Como sempre, refaço as cavalgadas que fiz quando havia lua cheia sobre as grandes invernadas. Sim, havia uma lua para os meus olhos, para os pássaros noturnos, para os campos, para as pedras: era uma lua para todos. É certo, eu vi, eu sei: havia uma lua clareando o mundo. Por entre as palmas dos bacuris, a lua brincava de esconder-se atrás dos montes escuros, e se comprazia em ouvir a música das patas do meu cavalo na dureza dos trieiros. E o meu cavalo sentia-se importante ao pisar as finas partículas de malacacheta que a lua transformava numa poeira de prata. Sob o chapéu de palha contra o sereno da noite, o meu corpo malemolente gingava na andadura macia do cavalo. Havia lua, sim, não apenas estas trevas, esta pedra solitária...

Meus olhos viram isso, eu não sonhei antes de viver, eu senti o frio do vento noturno em meu rosto, senti o perfume das flores dos ramos do assa-peixe, e do capim molhado do sereno. Repito-me: em lances rápidos da memória, eu tornava a aprender o que eu já sabia: o estrume trescalava no ar a lembrança de que o Brasil se fez grande nas patas do gado; gosto de lembrar-me disto mais pelo gado que pela terra em si. E isto era bem real, eu sei; e se eu não soubesse por mim mesmo, pelo meu próprio cavalgar tangendo gado, saberia porque a minha mãe me contou. Ela também viu: foi candieira adiante dos bois carreiros; enquanto ela foi viva, eu vi pelos seus olhos, o que ela viu antes de mim: a Minas de onde ela veio, era mais antiga que a Minas onde nasci.

E é assim, igual a todo vivente, que eu vou tecendo os meus aconteceres: os claros da memória são logo preenchidos com o fluxo contínuo do vivido, essas figurações da realidade, essas fantasias... aviso: se eu que sou eu não distingo umas das outras, que esperança tem você que leu-me até este ponto?... Desista, desista de mim, eu já desisti faz tempo... sentado na minha "pedra de olhar o mundo", eu só espero a morte, isto é, só como eu vim ao mundo.

Eu não disse nada, pois eu nunca digo nada. Eu apenas falo pelo vezo de falar, e por mero ajuste de contas. Recruzo paisagens antigas da minha geografia, e o que trago são relatos de viagens que nem sei quando fiz, se fiz; mas tenho nos bolsos os fragmentos, os resíduos, tenho também o cheiro de mato apisoado, ficou nas minhas roupas, nos meus cabelos, eu sei. Trago também no meu olhar um pouco da poeira prateada do luar, aquela que o meu cavalo pisava... etc...

Ao falar desses nadas, ressurge o mistério: por que o mero aparecer das coisas simples me incomoda tanto? Por que reparar na tenrice frágil de um planta apenas nascida no meu vetusto jardim? Por que não me canso de tanto repetir-me? Ser-se, é o maior mas é também o menor dos problemas que um tem nesta vida!

Serei logo transfundido na Natureza? Perder-me-ei num vento noturno, numa eterna noite sem lua? O que fiz de mim, e o que será de mim? A pele sensível que me separa das coisas parece estar se afinando, tornando-se cada vez mais rala, mais escassa... por isto, me ferem constantemente certas visões aniquiladoras. O espanto dos meus olhos vem de perceber que as pessoas vão se endurecendo em seus mundos, à medida que caminham: não faz sentido conversar com estátuas viajantes em suas vertiginosas carreiras... endureço-me, pois, e me dispo assim, em palavras uivadas para a lua... enlouqueço? Será? E então, Minas é alfa, é ômega: para melhor guardar silêncios, ciclicamente, eu torno a cavalgar nas noites de lua, voltando, em passo lento, para a sede adormecida da grande fazenda às margens do meu Paranaíba... ao longe, os cães já dão noticia da minha chegada.

... portanto, pelo "teorema das horas impossíveis", disso tudo resulta que eu recaio, compulsiva e ciclotimicamente, na indagação de Pascal:

"Vejo-me encerrado nestes medonhos espaços do universo e me sinto ligado a um canto da vasta extensão, sem saber porque fui colocado aqui e não em outra parte, nem porque o pouco tempo que me é dado para viver me foi conferido neste período de preferência a outro de toda a eternidade que me precedeu e de toda a que me segue. Só vejo o infinito em toda parte, encerrando-me como um átomo e como uma sombra que dura apenas um instante que não volta."

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[Penas do (meu) Desterro, 17 de setembro de 2007]