DO LADO DE LÁ DA LINHA DO TREM

Porque quando se é criança ainda não sabemos de nada...

Era ali que, desde sempre, eu passava minhas férias escolares de criança até a passada adolescência já prestes a entrar na faculdade.

Depois disso…a vida mudaria bastante, sempre consagrada em meio às inexoráveis badaladas do relógio da matriz da pracinha, o que até hoje marca as horas que passam correndo, mas que paradoxalmente sempre permanece alheio a toda passagem.

Uma cidadezinha do interior de São Paulo, algo mágica e da qual já muito escrevi, tão encantadora quanto aqueles trilhos, só aparentemente dormentes, que maquinavam poesia ao meu coração de menina, principalmente durante as nove horas de viagem pela estrada administrada pela então empresa FEPASA, a que me levaria da capital ao destino encantado de sempre.

Quando somos crianças não enxergamos divisas nem distâncias, as horas são infinitas, porém, algo ali me intrigava.

Meus familiares nos orientavam que eu e meus amigos, que eram muitos, poderíamos brincar por qualquer espaço urbano, menos do lado de lá da linha do trem.

Até parecia a tal da maçã do livro do Genesis: Era proibido avançar do outro lado da cidade e pronto, ninguém nos explicava por que.

Mas...quando somos crianças não enxergamos fronteiras e a curiosidade nos movimenta em ímpeto desafiador.

O que, afinal, haveria ali de tão proibido, do lado de lá da linha do trem?

Então, minha traquinagem preferida era atravessar a linha do trem para ir ao proibido ” lado de lá” e acho que era só porque, quando somos crianças, somos criaturas doutro mundo e não enxergamos diferenças de nada em ninguém de lugar algum.

Assim, eu esperava o apito costumeiro da máquina chegando de algum lugar de partida à minha plataforma dos sonhos, a esperava passar a trepidar os dormentes e então, com muita atenção, saltava dela, liderando a meninada do meu lado de cá a atravessar os trilhos, só para chegar ao oculto do lado de lá da linha do trem.

Certo dia ali ouvi duma amiga do lado de lá que ninguém também poderia passar para o nosso lado de cá da linha do trem, o que em nada me foi explicativo daquela situação de invisíveis divisas territoriais das gentes.

Até hoje não entendi o porquê daquilo, o de para ambos os lados ser proibido se chegar do outro lado da linha do trem, mas há pouco, nos cantos da vida, já consigo compreender a tal metáfora ilustrativa que apareceria de maneira contumaz pelos futuros caminhos de sempre.

Aquele “lado de lá da linha do trem” estaria não só na minha, mas por toda parte da História da Humanidade.

Seriam os tantos muros soerguidos pela intenções mundanas dos Homens e invisíveis aos olhos dos corações indivisíveis de criança.

Estaria nos discursos e nos púlpitos, nas divisões administrativas dos mapas do Globo, dos continentes, dos países, dos Estados e dos Municípios, estaria nas vilas, até nas ruas, quando também seria possível tristemente encontrá-lo na coabitação das casas e nos corações das famílias.

Digo que encontrei aquele “lado de lá da linha do trem” por todas as plataformas que por ora já ancorei: nas escolas, nas universidades, nas empresas, nos supermercados, nos bancos, nas feiras, nas igrejas, nos clubes, nos aeroportos, nos hotéis, nos hospitais, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.

“O lado de lá da linha do trem” metaforizaria todas as divididas paisagens dos Homens ; mas embora seja ele uma metáfora visceralmente vivificada a cada plataforma do tempo, até hoje continuo na minha atitude de criança: a de querer olhar, desafiar e atravessar para ao menos entender todos os lados.

Porque quando se continua criança nunca enxergamos sequer as notórias fronteiras tão bem delimitadas.

Talvez seja porque ,crianças, sempre carregamos a ingenuidade de acreditar ser possível pular e derrubar todos os muros dos homens para livremente se acessar os nossos legítimos laços.

Então, sigo no aprendizado de desafiar aquela minha tão precoce metáfora de vida, como se de nada soubesse, irreverente às tantas demarcações e sempre acessando todos os "lados de lá da linha do trem".

Ainda que seja na força dum simples verso, em utópica prosa pela igualdade dum único alinhamento de comunhão entre os Homens.