MARIA DAS GRAÇAS (por Eliane Almeida)

Vinha lá dos "cafundós dos judas", assim falavam aos que chegavam de tão longe e de lugares feios" , rs

(eram o que achavam)

Vieram para o meio urbano (dizem: civilizado) a família toda, eram oito, pai, mãe , três filhos e três tios.

A cidade era bonita, turística, montanhosa e cheia de flores, rosas principalmente. O que lhe dava a nome de : " Cidade das Rosas".

Mudaram-se para um casebre de três cômodos pequenos.

Era bem apertado, mas como se reuniam todos somente à noite, para descansar, dava pra viver.

Maria das Graças, até achava engraçado, dormir oito amontoados. Não havia privacidade (nem sabia direito o que era isso). O que lhe incomodava, eram os roncos durante toda a noite. Desde muito cedo já experimentara a chamada insônia, e, para distrair a noite, fazia sons imitando os diversos tipos de roncos emitidos naquele cubículo.

Assim foi crescendo, e mesmo desajeitada, atrapalhada, arteira , e muito diferente do seu meio, a menina tinha uma certa graça.

Mirrada, cor de cuia, cabelos tipo "Aritana", manchas de vermes no corpo, pés encardidos, as vestes estavam sempre poidas, já vinham usadas. Tinha sorte, a mãe tinha uma ofício bonito, era costureira, e uma vez por ano lhe fazia um vestido de flores miúdas, bem bonito, mas, este era somente para usar em datas como o Natal (isso não lhe agradava)

Mas, acatava, tinha outro jeito não, uai!

Os brinquedos eram da natureza, bonecas de cabelo de milho, eram encantadoras, pois punham-lhe a "cara" que quisesse...rs

De certo iria para a escola, esse foi exatamente o motivo pelo qual a família foi pra " Cidade ".

E lá chegara, na escola pública do bairro periférico, ainda com ruas de terra, sem redes de esgoto e quase nada de tão bonito que lhe falaram.

Porém, Maria das Graças, gostou da simples beleza da escola. Chegou envergonhada, pois trazia os materiais escolares, poucos que eram, dentro de um saco plástico de arroz; sabe , aqueles de família grande, sacos de 5kg, então, o próprio.

Envergonhada também, por se achar muito estranha , desde sempre, apesar da pouca idade. Pés encardidos no chinelos de dedos (não era chic usar chinelos, como hoje é).

E é claro, sofria muito esse " tar de bulli"! Imaginem, era inevitável.

Contudo, Maria das Graças, até engraçadinha (como lhes chamavam os poucos que simpatizava com a mesma) engolia a tudo que lhe vinha.

Aprendeu com o matuto pai, que não deveria reclamar, palavrões então, já havia lhe rendido uns bons tapas na boca "suja", assim era melhor engolir, mesmo que ruminasse por horas. Ninguém nem via isso, oras!

Naquela época os olhares falavam muito, via -se toda a braveza, e digo-lhes , eram bem compreendidos, não fossem, precediam as baitas surras. Assim que se " educava"!

Embora houvesse muito medo, a menina fazia graça, e sonhava...

Não tinha sapatilhas de balé, viu uma vez na televisão, em preto e branco, e as achou bonitas, as meninas que podiam dançar e usar as fantasias de magia, como mesmo dizia.

Mas, não podia achar muita graça, ouvia-se : isso não é pra você!

Ela, desviava a atenção, e dentro daquele aperto, dentro daquela esquisitisse toda, queria sonhar, com roupas de brilhos, franjas, colares de pérolas, e afins. Fantasiava a vida dura...

Ali na rua onde morava, nas valas onde passara a enxurrada, onde futuramente seria a tão sonhada (pelos outros) rede de esgoto, Maria cheia de graça experimentava a liberdade.

Mas, lhes conto, apanhava quando em casa chegava; suja de lama , a menina arteira, chorava , pois as surras, eram pra deixar marcas, pra que, não ousasse, voltar para as "valas da sua liberdade".

As surras faziam parte do seu cotidiano, até estranhava quando não apanhava.

Será que estava aprendendo a ser boazinha e obediente?

Eis que , aos 9 anos, experimentou um gostinho diferente e instigante de liberdade (ainda que restrita).

A engraçadinha, foi apresentada à Poesia , à Cecília Meireles, e a partir dali, começou a viver no mundo do encantamento.

Por pouco tempo, pois logo lhe disseram: isso não é pra você, ralhavam-lhe: isso é pra quem não tem o que fazer. Coisa de gente vagabunda". Achava medonha essa expressão.

E como não podia ser vagabunda, já trabalhava aos 10 anos de idade. Eram tantas, as obrigações, que precisava transforma-las em brincadeiras, pois não sobrara tempo pra brincar . E...assim, também apanhava, menina teimosa, arteira e sem juizo.

Bom, não sabia o que era um ritual, mas parece que apanhar era quase um ritual diário!

Porquanto, passemos à frente; pois falamos muito de surras, e isso indubitavelmente não era o que mais lhe doía!

Lhe doía a estranheza de ser e estar .

A dor vinha quando não podia viver a poesia.

Quando não podia dançar o Charleston, ou Michael Jackson, ou imitar Tina Tuner.

Lhe doía quando lhe castravam o cadiquinho de liberdade que havia ;

de brincar, se sujar, molhar, gritar, e até chorar , pois precisava engolir o choro pra não mostrar aos outros o que estava acontecendo.

Então precisava ser forte, viver o tempo todo dentro de normas", regras", ser uma " menina" , com modos de menina.

Não podia nem usar kichute (achava tão estiloso) pobre menina, que graça tinha esse troço feio, que se amarrava nas canelas finas e craqueladas de barro?

E certamente a pobreza material a limitava um pouco mais, pois não havia muito o que fazer , nem o que ler, nem pra onde fugir...

Escondida chorava, mas engraçada que era, ria do choro misturado à meleca de nariz, então a "engraçadinha", "esquisitinha", não podia deixar de sonhar , de fantasiar, de tentar, de poetizar, de chorar .

Assim conto -lhes essa pequena parte de

Maria das Graças, que diante da desgraça, via graça, fazia graça, de graça, pela graça de VIVER!!!!!

Eliane Almeida

Eliane Almeida
Enviado por Ed Wolf em 24/12/2018
Código do texto: T6534624
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