NADA A DIZER

Tento me convencer que é possível escrever sem o pudor dos que escancaram os signos de uma paixão.

Como a música distante, alheio em mim mesmo os sentidos e

deixo-me vagar na tangência das letras, divergindo de minha razão como se a fantasia pudesse passar ao largo dos que dormem famintos nas calçadas frias.

Que poderia dizer deste capricho que ouso tecer, nas malhas frias de um teclado indiferente, chantageando a mim mesmo com a expectativa de um próprio mal inoportuno?

Quantos, insuportavelmente, tentaram ter à mão a certeza insuspeitável da coreografia de um corpo em espera?

Perturbo-me ante a delicada aflição de delatar que já não desejo nada com excessiva loucura, e mal disfarço a indiscrição de sufocar em mim o corpo que se inclina ao objeto de desejo.

Escondo inultimente em olhares tergiversados meus sentimentos ultrapassados e já não encontro ânimo por delatar o que sinto.

Como se esconder pudesse sufocar esse teatro que armei, agora vazio das expectativas delicadas e dos enredos com que teci em tardes de sonhos; como num círculo fecho-me no exílio dos próprios sentimentos,

sem mistérios da calma.

Essa placidez é antes nula, e nela afundo-me na incerteza de que sou eu quem deve deixar que esse delírio estranho se vá, no voejar aleatório das palavras que são ditas em épocas tardias.

Sinto-me na calmaria de uma melancolia que me arremessa na decadência do próprio mutismo, como se todos os silêncios voltassem a esconder suas asas em meu peito.

Na não-ação em que me arremesso, escolho a deriva de seguir, como um fato que não necessita interpretações.