[Um Certo Pé de Manacá]

De olhos abertos, passo por esta calma rua de um certo bairro de Penas do Desterro. Não, não se trata de redundância: geralmente, as pessoas caminham mesmo é de olhos "fechados", pois estão encerradas apenas em seu tempo próprio, um tempo que tenta, sempre sem sucesso, é claro, excluir o olhar para outros tempos.

Caminho atento ao modo de vida que as coisas me relatam. Interrogo as pedras da rua, os paralelepípedos de granito, os velhos muros cobertos de musgo, a mangueira anosa com os galhos sobrando para a rua, as fachadas das casas antigas, as janelas venezianas. Em algumas casas mais antigas, ainda há até aquela pequena grade de ferro fundido que dá para um porão. Posso até respirar o sossego que ainda há nesta rua antiga, posso até pensar no ser desta rua, como se ela tivesse uma personalidade, um modo próprio de existir - e quem garante que não tem? Pelo menos, por algumas décadas, ela tem sido o que é agora. O futuro pertence a outros homens, não a mim, eu morro nesta rua de agora.

Não há viv’alma na rua. Caminho, caminho... Paro em frente desta ampla casa de alpendre: o murinho da frente é tão baixo que se pode, sem grande esforço, literalmente passar uma perna por cima, a outra perna e adentrar o jardim... jardim?? Ah, de um lado e do outro do corredor de cacos de cerâmica que começa no portãozinho da rua, estão os cravos, os vermelhos e os brancos; mais ao fundo, nos dois lados, do jardim, as roseiras de longos galhos, as brancas dálias. Em frente ao murinho da rua, as fileiras de margaridas, e junto aos muros laterais, os canteiros de beijos. Ao fundo, ao lado do portão que dá para o quintal, a multicolorida moita de maria-sem-vergonha. Ao lado da entrada do alpendre, um pé de manacá sob a ampla janela veneziana do quarto do casal

"Lá detrás daquele morro,

Tem um pé de manacá,

Nóis vão casá,

Nóis vão pra lá,

Cê qué?

Cê qué?"].

Que tempos passaram sobre esta casa? A que revoluções assistiu? Como terá chegado ali a notícia da Segunda Guerra? Da morte de Getúlio Vargas? De Francisco Alves? Houve um tempo em que a morte de alguém importante ficava dias e dias no ar, sendo lembrada, uma comoção nacional; hoje, pouca gente se lembra de que Nelson Gonçalves já se foi... E os crimes famosos então? Teria alguém se sentado naquele alpendre, para ler sobre a morte de Aída Cury, de Dana de Teffé? Eram outros os tempos, outros... havia tempo para o tempo de ser, de estar...

Para mim, até hoje, uma casa assim, representa [ou representou, se já partiram] o sonho das pessoas que a construíram essa morada e plantaram o pé de manacá, de suave perfume que lembra a guardados. [Do profundo interior da casa vem o som do carrilhão do relógio de parede sinalizando o fim do dia...

Não sei ao certo por que a contemplação desta casa revolve em mim sentimentos, recordações dos tempos já idos... nostalgia de coisas que eu não vivi, nunca tive: o pai que eu nunca pude esperar no fim da tarde, as festas de que eu não participei, as namoradas que eu não pude ter, os carros que não foram meus... um mundo de coisas que passavam ao largo de um menino filho de uma viúva pobre. Havia em estoque uma felicidade para mim, eu pensava... mas como se eu nunca pude ter uma casa como essa?

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[Penas do Desterro, 14 de setembro de 2007]