Carta de despedida
És assim a figura sorridente da superficialidade, essa linha reta, esse prato raso. Poderia eu desejar de ti que alcançasses os limites dos meus desníveis ou que abarcasses a imensidade dos meus sentimentos? Talvez não sejas capaz de conter nem mesmo um suspiro para além de ti.
És assim esse meio sorriso que mostras a todos mas não dás a ninguém. Poderia eu pedir de ti mais que a lembrança de um ébrio sono compartilhado? Talvez somente tenhas para me dar esse habitual beijo no rosto que distribuis com velada indiferença a todas as marias que te rodeiam.
És assim esse livro aberto com páginas sempre em branco, nas quais não se pode escrever. Poderia eu esperar de ti uma longa prosa ou mesmo uma singela poesia? Talvez somente uma tímida exclamação.
És assim essa mão vazia estendida para as estrelas longínquas. Poderia eu exigir que me fosses apoio ou referência? Talvez não mais que uma breve companhia de frívolos momentos.
És assim a imagem da neutralidade, a constância dormente parada a meio caminho da alegria. Poderia eu arrancar de ti essa lívida paz e arrebatar-te ao mais alto do encantamento ou fazer-te doer com o mais fundo dos meus sofrimentos? Talvez não suportasses o primeiro tanto quanto não suportarias o segundo.
És assim esse coração ritmado que não se perde e não se encontra. Poderia eu alcançar de ti algum privilégio, ser uma nota destoante (para bem ou para mal) nessa monótona marchinha dos teus afetos? Não havendo lugar na tua harmoniosa sinfonia para este acorde desafinado que sou, parto hoje (não sem saudade) em busca de um louco músico que tenha a coragem e a aspiração de me tocar.