CANÇÃO PSICOLÓGICA (Sem Melodia)

Meu caríssimo mundo, que bom encontra-lo aqui! Como tens passado? Precisava mesmo falar-te, conferenciar contigo. Dizer-te que há algum tempo desisti de fazer-te à minha imagem e semelhança. De te moldar em benefício próprio, de te tornar conveniente. Tú és demasiado rebelde, volúvel, eu jamais lograria êxito nessas minhas empreitadas. Engraçado, mas essa constatação conferiu-me uma paz insólita, que me chegou de surpresa, serena, e espero apenas que ela perdure em mim. Andei errando em tuas esquinas, indeciso em bifurcações. Detendo-me mais que o devido em teus atrativos, teus encantos. Adormeci em tuas paragens, iludi-me com tuas promessas, voei sem asas em teu céu imaginário. Todos esses desvios ocasionaram-me atrasos, mas não me tiraram do caminho. Enchi minha valise de experiências obsoletas, tudo foi aprendizado, do qual ainda não fiz uso. Disparo agora pela senda inevitável de meu ser, mais forte, penso eu. Ao menos até meu próximo tropeço, seguirei por tí, amarei ainda mais as tuas ruas, abraçarei efusivo tua circunferência. Estou agora mais desperto, escolho os sonhos que desejo sonhar, e os que não quero simplesmente lanço-os na realidade, até que evanesçam por completo.

Perdoe-me, mas não mais me farto em teus néctares inebriantes, e tuas substâncias de euforia já não me seduzem. Quero de tí somente o recanto mais aprazível, a nota mais doce, o desejo mais sincero, o amor mais altruísta. Não, não zombes de mim, caro mundo, embora minhas palavras soem patéticas, sem eloquência. Sei que quero coisas que talvez nunca possa alcançar. Minhas canções psicológicas já foram por demais executadas, hoje já não tocam melodias nem corações. Continuo sendo um fraco obcecado pela força que nunca me chega. Penso em pedir-te algo agora, meu mundo, mesmo que para isso eu tenha que cruzar a fronteira da covardia: Mostre-me teus lugares recônditos, teus prazeres imersos em aguas calmas, límpidas, livre do flagelo da culpa. Pegue-me pela mão, me conduza, talvez eu não consiga sozinho... As curvas são muitas, tuas aventuras sedutoras podem me arrebatar novamente, jogar-me pelo caminho oposto, sem luz. Não, não me venha com esse chavão do livre-arbítrio, nem isso mais me consola. Leve-me, pois tenho fome de paz, sede que só o espírito pleno pode aplacar. Venha, dê-me teu desejo mais puramente lascivo, para que eu não me consuma sozinho, sem encanto. Quero teu amanhecer mais iluminado, teu céu mais aberto, teu amor mais caudaloso. Quero e ainda não tenho, ou não posso ter. Ou ainda, talvez nunca os tenha. Mas foi bom falar a tí meu mundo, lembrar-me das pessoas que encontrei em teus domínios, das que permaneceram e das que se foram, sem avisos. Das mãos que me teceram carícias e das que me acenaram em sinal de adeus. Das bocas que me proferiram amores e promessas, outras impropérios e mentiras. Desde já agradeço pelas coisas que aprendi por teus lugares, algumas a ferro e fogo, outras à mãos brandas e pacientes. Por ora retomo a caminhada, certo de que abruptamente a paisagem pode mudar. Sei-me agora peregrino de tí, meu mundo, e sei que novamente vou enveredar por caminhos errôneos, talvez desembocando em acessos mais longos, mas que acabarão por me conduzir até o destino final. Até lá andarei por tuas estradas, medirei distâncias, colherei informações. Quem tem boca vai aonde quer... Mesmo desconhecendo o caminho.