PRENHEZ DE CORPO, FOGO E BRAÇOS OU O RIO DE NÁDEGAS, CIOS, SUOR E SUMOS

Da agulha e linha à colcha de retalhos dos poemas de alcova, dói-me o corpo que em mim não pensa. E a dor exaurida no ventre varre tudo o que antes parecia presença. Nem a poesia supre a falta. Nas labaredas passeiam olhos úmidos e boca pastosa. Os rostos ardem. O espelho funde o corpo de reflexos. Pálpebras se fecham para além do gozo. O amar por acaso tem sexualidade definida? Este estado de pureza não discute diferenças de côncavo e convexo. Talvez seja por isso que se diz ao correr das horas que anjo não tem sexo. O corpo espreguiça memórias noturnas e com sono abro a porta do quarto. O sol está dentro de mim e a manhã penetra os poros. O coração é sempre o mesmo em qualquer época ou idade. Usufrui de autonomias à revelia de pensar solilóquios, cismas e vontades. Ele é em verdade o dono da vida. Há muito sinto a mesma cena: soluço de sono e mar batendo o rosto na praia. E a vontade de dormir com ela no movimento das ondas, inexoravelmente. A carruagem tem cavalos alados e monto o destino como um cata-vento de açúcares. Espero a chave de teus pudores para que me craves a emoção de prata. Penetra-me, diz a voz do fogo, e seu púbis reclama. Arde a lareira e seus pelos. Cospe, cospe mais! O centro do mundo gravita grávido: prenhez de fogo e braços. Bocas são pontas de aço enquanto labaredas dançam. Teus alvos dentes mordem maçãs, num ritual de vestal e rainha e a festa está completa. Há cansaços demais neste zelo de nos sabermos prontos. É um jogo de xadrez a trapaça de viver neste inusitado demônio que nos viaja. Centelha nos lábios, raízes enlaçadas roçando o sensitivo cerne, o mar vai batendo escolhos, batendo sobre pedras e musgo. Aqui a vida, efêmera como um raio, ao pé do lugar em que estamos, em qualquer lugar. Selvagens ginetes adejam alados no jogo da vida. Naquele minúsculo retiro, entre sombras e cortinas, corpos nus falam mais que mil palavras. Talvez agora possa dormir livre dos suores notívagos que ainda empapam a fronte e o pudor. Corre, ao adormecer, um rio de nádegas, cios, suor e sumos. Enche os pulmões de desejo que eu vou chegar com fome. Por vezes, confesso, sou antropofágico. Saudade do corpo é aquilo que toma o coração e paira solerte dentro de nós. No poeta vai além: semelha-se ao espinho debaixo da unha, justo na mão que tatua a ausência. E no ventre dói desesperadamente. A entrega do corpo é prelúdio para o dia que se avizinha com promessas de alguma possível permanência. A Poesia é lençol sobre o corpo necessitado de tatuagens. Por vezes, o poema é o coito não concedido. Abre o chacra em conchavo e me concede a penetração, ó irrevelada dama, exclama o alter ego possesso de paixão. Por fora, o espelho deleita o rijo ventre à falta de. Motivos estremecem peito e torso. Dor ladeira abaixo, que o amar faça o ápice e aplaque a dor no dente. E ele é esganado: só come o que gosta. Intimidade de saber-se bicho no cio – fêmea sem perder a inocência. Tudo mais abaixo, à espera da onda que me torna cega, a ponto de não conseguir. Dói-me o corpo que em mim não pensa. E a dor exaurida no ventre varre tudo que antes parecia presença. Volto a colocar a camisa do pijama e guardo a caneta – a incorrigível delatora. Faz algum mal ser de cama, mesa e palavra? E o poema vem com o sortido tempero de quero mais. E se morre de vontade de pecar a mais não poder, enquanto ainda há tempo, gozo e fruição. Porque nestes domínios da fome do corpo, mais que tudo, ninguém é de ferro. Abraça-a e a come, sem falar nada, diz-me o demo, porque nem a poética me sustenta. Prefiro morrer a cada vez que o amor vem, porque ele me salva do devir. E o dia seguinte guarda o perfume da flor. Que venha o que tiver de vir: o Absoluto nos ampara no que somos de criatura. E nos transcende para além do nada que realmente somos.

– Do livro inédito POESIA DE ALCOVA, 2014:18.

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