Treva tecnológica
São três horas da madrugada e meu sono foi embora. Malvado, mal educado, deixar uma dama só a essa hora.
Virei-me um lado para o outro, feito bolinho a fritar em óleo de coco. Calor e frio, a umidade do suor no pescoço. Vou levantar! Melhor não, vai que tropeço, acordo os anjos e ganho um esporro.
Da cama abri as cortinas, a janela e mirei o céu; agora tingido de um azul quase roxo e decidi esperar pelo amanhecer. Coisa linda de se ver. De mansinho os tons foram mudando, clareando com a expressão de um Rembrandt e a delicadeza de um Monet.
A brisa fresca penetrou o quarto e minhas narinas foram invadidas pelo ar perfumado e suave de um novo dia, carregado de novidades pela singularidade exuberante daquele discreto milagre. Ergui-me mais um pouco e pude ver o jardim onde, na calmaria dos miosótis, as gotículas de orvalho depositavam suas lágrimas de alegria. Naquela profusão de cores, numa orgia criativa, pude perceber a insensatez dos humanos ao ignorar tamanha magia, renovada todos os dias para o deleite dos mais atentos, dos sensíveis, dos loucos abandonados ao relento, como prova do desamor da criatura perante a criação.
Como não haveria amor Dele para conosco? Penso que Ele deve sentir profundo desgosto por entregar coisas tão belas, delicadas e frágeis como a vida o é em nossas brutas mãos.
Totalmente desperta e com minhas retinas impregnadas de beleza, percebi que minha falta de sono não foi em vão. Na verdade andava triste, alma abatida, coração descompassado e acho que Deus não resiste ao ver um filho seu sofrendo de solidão. Então me acordou bem cedo, e como a sussurrar um segredo, soprou esse querer de abrir a janela e ver que estava envolvida por Seu grande amor, que insiste e persiste em renovar meus dias com graça e cor, só que eu não percebia.
Como tantos solitários, ando envolvida na falsa magia de um mundo tecnológico, que oferece ligações, fragmentadas conecções, mas não me dá nada, só tira. Do dinheiro aos abraços, plastifica tudo, rouba laços e nos distrai do que é relevante para uma tela de led fria e cativante. Amores que não amam, relações vacilantes, fotos e fatos falsos fabricados, fascinantes, que nos fazem acreditar que o comum é irrelevante.
Quero abrir a janela todos os dias, não a da web, mas da minha vida e curtir a realidade do hoje e do que está por vir. Não vou voltar à idade da pedra, também não ia querer voltar para lá, mas lembrei que tenho escolhas e não quero mais ser massa de manobra fustigada, mastigada e cuspida dessa era de trevas onde a tecnologia nos deixa sós, nos tira o sono, os sonhos e não nos permite mais sentir, só existir. Vou valorizar mais meus relacionamentos, revisar as opções que fiz, tentar reverter as consequências, ignorar maledicências, ódio e incoerências que por meio da telinha tentam me nutrir. Quem sabe as futuras madrugadas não serão mais solitárias e poderei dormir, amar, acordar e apreciar a vida com testemunha? Acho que dá para conviver com o novo, sem relegar o singelo como velho, cheio de mofo pois, afinal, como acham que chegamos até aqui?