O PÃO DE CADA DIA...

Teus pés pisam indiferentes

o escuro da noite derramado nas calçadas

que, em represália, atira sobre ti

suas maldições, suas pragas

e seus fantasmas...

Do velho relógio da praça

descem sequiosos os vampiros das horas noturnas

que, sem qualquer piedade,

sugam de tuas jugulares

o viço da juventude

sem que pressintas...

Sem que pressintas, também,

sorves cotidianamente

a tua própria morte

em pequenos goles,

nos tragos que te oferecem

os teus eventuais parceiros

ou, ainda, deixas fluir aos poucos

a tua vida enlanguescente

em cada uma das tragados dos cigarros baratos

que fumas apenas por fumar...

Teus olhos, de olhares incertos,

expressam com clareza

os teus dias futuros...

Contigo estão os bêbados,

os vagabundos, os solitários, os notívagos...

Contigo sonham os meninos das ruas,

meninos homens,

que, das bancas de revistas,

roubam pôsteres das mulheres nuas

para a masturbação,

para os prazeres

que das mulheres reais deveriam obter...

Contigo sonha, talvez, um marinheiro,

já que foste a última antes da viagem

e não há mulher no mar

pois no próximo porto,

uma outra mulher assim como tu,

satisfará as suas necessidades...

Contigo sonha, quem sabe, o rapazinho

que hoje se oculta no peito de um adulto

(que te conheceu antes do que hoje és)

e que se revela à noite

quando reina a solidão...

Sonha, por certo, contigo menina

quando ainda confiante querias um futuro,

pois hoje, mulher, queres o passado...

Contigo sonham os que te desejam,

aqueles que querem o teu corpo

sobre um colchão qualquer,

em uma pensão barata,

para momentos de prazer sem amor

e que culminam em rápidas ejaculações...

Contigo sonham

os que te fazendo suar o corpo inteiro

não te querem pagar “o pão de cada dia”,

- cada dia mais difícil –

pois a lei é: “ganhar o pão com o suor do rosto”

(especialmente do alheio)

e não usas suar no rosto

para não desmoronar a tua esquálida pintura,

tua casamata, tua máscara...

Contigo, talvez,

em um cubículo qualquer,

sonham bocas inocentes e famintas

que dependem exclusivamente

do galopante definhar de tuas magras carnes

para o aumento de suas estruturas

de ossos e carnes magras...

Contigo sonham os cáftens,

contigo sonham os poetas,

contigo sonham os fantasmas

e os vultos da noite

companheiros teus nessa ida cotidiana

por bares, praças e esquinas

para o teu norte de cada dia...

para a tua sorte de cada dia...

para a tua morte de cada dia...

para o teu pão de cada dia

ganho com o suor da tua alma

(mesmo sendo contra a lei)...

(Belém – 29 de janeiro de 1982)