Rotineiramente ruim

Exemplifica-se a dor considerando a familiaridade que se tem com ela.

Comparando experiências, dizendo, ou pensando, ou sussurrando, dissimulando talvez a ideia, ridícula ideia, de que se tem ideia exata da dimensão do sofrimento do outro se baseando na experiência que teve – ou na experiência de alguém que conheceu - , - ou na experiência que ouviu dizer que alguém teve -.

A dor se torna mensurável na mente de quem não sofre do mesmo mal.

Ignora-se uma dor que é constante porque não é de agradável escuta o sofrimento irremediável que assola, que tortura. Uma constante tortura.

Uma tortura que não respeita ponteiros de horas, minutos, segundos... não respeita, ambiente, companhia agradável ou não. Não respeita o receptáculo que a leva. Uma tortura que sem prévio aviso consome qualquer sinal da mínima alegria, como uma culpa por não sentir-se morrer a cada instante.

Uma tortura que invade o sono. Que traz sonhos impossíveis... que acordam quem sonha em um sobressalto, pessoa essa que resiste em despertar, em aceitar que não é real. E então, por um instante, um breve instante (breve demais), se reconhece a realidade. A realidade que fere, que faz com que o esforço para respirar seja demasiado, a realidade que traz uma ardência aos olhos, que leva o gosto salgado aos lábios.

É o início do dia.

Só o início. Uma demonstração do que virá.

Os pensamentos se intensificam. Ainda não há sol. Não há som. Nenhuma tola distração.

Só o pensar. O considerar.

A culpa. As suposições.

O medo. O constante medo.

É o início do dia.

Enfim é dia. Tem sol transpassando a cortina puída. Um despertador desnecessário.

Só o início.

Segue-se então o levantar, o vestir, o comer.

A rua.

O barulho. O movimento constante. Os empurrões. A pressa.

A pressa massacra quem precisa se esforçar para andar, para respirar, para conviver. Sobreviver.

As horas se arrastam. Minutos intermináveis. Pensamentos intermináveis. Uma culpa interminável.

Um desejo de algo que não se pode explicar. Um “eu quero” sem complemento. Não se quer nada. Não se tem nada.

Muita concentração é gasta no esforço de se distrair. E caso funcione, a culpa aponta no peito, cobrando o sofrimento. Não há descanso para quem sofre.

Surge então o descompasso do coração, a sensação de que alguma batida lá dentro bateu errado. A tontura; o girar das coisas, das luzes e vozes.

A certeza da proximidade da morte.

A qualquer momento.

No peito há uma bomba relógio.

(Em todos).

Talytha Duarte
Enviado por Talytha Duarte em 02/08/2018
Código do texto: T6407275
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