Mulheres em mim

Eu venho de uma família de mulheres fortes.

Minha tataravó veio para o Brasil fugindo da Itália escondida no porão de um navio; estava fugindo de um homem que decidiu que se casaria com ela. Ela deixou a família e toda a vida que conhecia e fugiu de seu país para não se casar com ele. Mas ele veio atrás dela. Legalmente, sem porão, sem fuga, sem se esconder. Ela, acuada, se casou e pariu cinco filhos dele. Um dia andava pela rua e um outro homem a olhou. O marido matou esse homem, considerava a esposa sua posse de tal forma que não poderia ser olhada. Ela criou seus cinco filhos sozinha, o marido na cadeia. Anos mais tarde quando ele foi solto, filhos criados e já com netos, ela não o quis mais.

Porcela foi o seu nome.

Uma das filhas da Porcela casou-se com um jovem viúvo que por profissão cavava poços. Tiveram quatro filhos. Ele não sustentava a família, pois o que ganhava com o seu trabalho gastava fora. Ela deixou a sua filha mais velha de sete anos cuidando dos irmãos menores e foi trabalhar como tecelã em uma fábrica, lá aprendeu a escrever o seu nome para marcá-lo no tecido. Guardou aos poucos dinheiro de seu salário e anos depois tinha o total para dar entrada na primeira casa própria de sua família – para total espanto de seu marido.

O nome dela era Philomena.

A filha mais velha da Philomena com sete anos ficou responsável por cuidar dos seus três irmãos mais novos, um garoto de seis anos e duas garotas com três e um ano. Não sabia ver horas, esquentava a comida para o almoço na hora em que o avião sentido Rio de Janeiro passava, e a janta, quando ele voltava. Estudou apenas até a quarta série. Tirou o diploma com nota setenta, gostava de desenhar mapas. Aprendeu a escrever sem ajuda de seus pais que eram analfabetos. Casou-se com o único homem que amou e com ele criou três filhos. Cuidou dele durante o câncer. Cuidou dos netos. Ajudou a todos que cruzaram o seu caminho, com um prato de comida, um teto, uma palavra ou uma reza. Morreu como queria: dormindo.

Se chamava Alice.

A Alice adotou a Ana. E Ana foi uma revolução. A Ana foi a filha mais travessa, a criança mais desordeira, a adolescente mais complicada. Repetiu de ano na escola, engravidou na adolescência, teve vários namorados. Mandava em si mesma, não obedecia a ninguém. Ana foi “mãe-solteira”, não sabia ao certo quem era o pai. Ana usava roupa curta, ouvia música alta, mal sabia cozinhar. Ana não terminou a escola. A Ana se separou do marido. A Ana saia a noite. A Ana era dona de si. Ela tinha identidade, personalidade, sabia ser.

Eu nasci da Ana, que foi criada pela Alice, que foi criada pela Philomena, que foi criada pela Porcela. Tenho em mim suas raízes, suas determinações e sabedorias. Não esperem de mim menos, não serei eu a interromper esse legado feminino de força.

Talytha Duarte
Enviado por Talytha Duarte em 01/08/2018
Reeditado em 28/08/2018
Código do texto: T6406543
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