Afinal, o que é o PIB?

O meu pai foi um homem humilde. Sempre muito humilde e trabalhador, e foram essas as orientações que sempre ouvi dele sobre a vida, e orientações de pai devem ser seguidas a risco, como todos sabem.

Ele acreditava que o importante era a união da família. Estava em seu quarto casamento. Vinha de uma família desestruturada, de pais separados. Acreditava que deveríamos ficar juntos, ele, minha mãe, minha irmã e eu, como uma família; com as dificuldades ‘’comendo pão com ki-suco’’, como sempre dizia. Nunca bebemos ki-suco, mas eu entendia o conceito.

Após quatorze anos de casamento minha mãe o deixou. Um tempo depois ele foi embora de casa, e essa separação o modificou, o transmutou, o transformou. O meu pai-herói se converteu em um homem beberrão e chorão. Desagradável na maior parte do tempo. Mas eu o amava. Insanamente. Nunca o deixei sair da minha vida. Sempre me impus através de telefonemas, cartas, cartões e visitas.

Com treze anos fui visitá-lo como rotineiramente fazia, ele me levou a um bar, como rotineiramente fazia, lá nos encontramos com um primo seu, que por uma dessas confusões de família que são complicadas de explicar, eu não tratava por primo, mas sim por tio, o tio Zezinho. Esse primo do meu pai era melhor de vida. Apartamento, carro e empresa, tudo próprio. Casamento mantido apesar das traições. Os abortos da filha mantidos em sigilo. Um homem de bem. Nessa noite discutia-se política no bar. Meu pai dizia apenas ‘’É tudo ladrão!’’, que é um ensinamento passado de pai para filho em nosso país, e que nos exime de maiores esclarecimentos. Mas não para o meu tio Zezinho. Tio Zezinho estudou, ensino médio e curso técnico. Não foi como o meu pai que precisou deixar os estudos após quatro anos de escola para ir trabalhar, não… Tio Zezinho queria discutir o assunto a fundo, queria destrinchar os problemas da nação. Queria discutir o PIB.

Neste momento meu pai silenciou, na frente de todos os homens do bar e na minha frente, o meu pai que já queria ter interrompido o assunto depois do ‘’É tudo ladrão!’’, silenciou. Seu primo alto, de sapato bonito e camisa social perguntava agora se o meu pai, meu pai de um metro e sessenta, bermuda, camiseta do Corinthians e chinelo, sabia o que era PIB. Diante o seu silêncio, perguntou uma e outra vez, ao que o meu pai respondeu em um sussurro, com o olhar baixo: ‘’Agora eu não estou me recordando…’’.

Eu não me lembro do restante da conversa, do dia, e nem mesmo sei dizer se vi o Tio Zezinho depois disso. Naquele instante eu só conseguia sentir raiva, um puro sentimento de ódio por aquele sujeito arrogante que humilhara o meu pai, o meu já derrotado pai, na calçada de um bar, em frente aos seus amigos e de sua filha. Esse sentimento nunca passou, a humilhação também foi minha, por não ter impedido, por não ter sabido responder algo que o humilhasse de volta.

Mais de dez anos depois fiquei sabendo de sua morte, que foi antes da do meu pai. Não lamentei. Deixou esposa e filha endividadas, miseráveis. Não lamentei.

Lamento somente a vida dura que o meu pai (sobre)viveu de 1953 até 2016. Lamento que a sua mãe o tenha trancado em um quarto com o seu irmão mais velho enquanto transava com o amante em outro quarto; lamento que o seu pai tenha flagrado essa situação e incendiado a casa; lamento que essa mãe o tenha abandonado depois disso; e lamento, muito, que esse pai tenha morrido como indigente embaixo da Ponte de Limão de frio em um inverno de um ano que eu não sei qual.

Há uma série de lamentos em mim, um sentimento de impotência de não ter impedido que coisas absolutamente ruins acontecessem a uma pessoa absolutamente boa. Lamento que as relações afetivas do meu pai não tenham vingado. Lamento que ele tenha tido câncer. Eu não podia controlar isso. Não fui capaz de impedir a morte de levá-lo. “Nasci sozinho e vou morrer sozinho”, ele sempre dizia isso. E morreu sozinho, em um hospital em uma cidade que não era a sua. Eu não estava lá. Ninguém estava. Sozinho. Lamento a minha inutilidade em perdê-lo, em não ter o poder de segurar sua alma em seu corpo.

Lamento não ter tido tempo o bastante para salvá-lo. E lamento, acima de tudo, o que eu lamento, é não ter acertado um tapa no rosto gorducho e rosado do tio Zezinho quando deveria.

Talytha Duarte
Enviado por Talytha Duarte em 01/08/2018
Código do texto: T6406536
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