O OLHAR DO (SEU) ABISMO E OS INTESTINOS DE (SEU) DEUS
As escolhas da vida têm um peso e uma dimensão própria do caráter inusitado de toda uma vida.
Ponderamos sobre o futuro e meditamos a partir do passado, como contraponto ao presente. A definição da satisfação com nossas escolhas leva em consideração o que já vivemos. Assim, como que almejando um viver desesperançado, para se alcançar uma felicidade desesperançada, que se refere André Comte-Sponville, tenta-se entender o inusitado da vida.
Note, no entanto, à guisa de algum esclarecimento, o pasmo que tivemos ao ler, em Milan Kundera, que as metáforas externalizam algo totalmente incomensurável. Em uma dimensão que se iguala à impressão de se saber estar em um lugar diferente, mas ao mesmo tempo ignorado, de tudo o que já conhecemos, e, portanto, definitivo a nós.
Não há ponto de retorno no caminhar de nossos dias, inobstante. Desse modo, não se tem como saber se o que se fez é o que de melhor se poderia ter feito, porque o que não foi feito, é o contraponto do decidido, e só existe em potência. Ou seja, não existe realmente.
Evocando, novamente, Milan Kundera, a vida não tem rascunho. A vida é para valer, desde a primeira tentativa. Mesmo que a evocação de mundos paralelos faça algum sentido à física quântica, assim como o gato mortovivo de Schrödinger exista cotidianamente para outros.
Pode-se tentar: ao se atrelar a vida a um evento aleatórioquântico, a significação dessa nossa vida se revela por meio de uma percepção outra (quântica), derivada de um estado interpretativo externo a nós, próprio de um observador senão onisciente, superior à nossa percepção, pois alheia a ela. Oposto, portanto à nossa subjetiva percepção do estado de coisas que se cercam a nós mesmos. Sim. Mas, há aí um perigo oculto, como se olhar para o abismo e ter de suportar o olhar do abismo para si. Pois, se se pensar no que dissemos, estamos justamente dando consciência ao abismo, pela face inusitada de um ser divino (ao menos metafísico).
Se um dia se vai morrer e todos os outros vão viver, lembrando de Kazuo Ichiguro, em “Os Vestígios do Dia”, quando se olha para traz o que você vê? Vale a pena continuar caminhando em direção ao por do sol? Porque se se deixar de caminhar, o por do sol virá até você de qualquer forma. Ao menos, dirão alguns, pode-se poupar algum fôlego. Mas, para que? Perguntaríamos nós, se à noite já não se pode enxergar nada. A bem da verdade, nem se saber, ao menos, se existirá alguma noite. Melhor, parece-nos, exercitar-se sob a luz do sol, mesmo que ao cair da tarde, não seja mais uma luz tão quente, nem tão forte, como já fora, ao meio dia.
A obscuridade da meia luz é como as brumas que recobrem as verdades inconvenientes que são parcimoniamente sussurradas, em tom solene. É como mencionar, por duvidoso dever moral, a traição de Lancelot e Guinevere a Arthur.
E se nós tivéssemos dobrado à esquerda em vez da direita, em algum momento da caminhada, faria agora muita diferença nessa fase de nossa vida? A face do Deus metafísico que mora no abismo olha-nos lá de dentro das trevas e esboça um sorriso sarcástico.