Resgate
Um café. Respiração lenta, olhos fechados. Está escuro e não é permitido ouvir nada que esteja fora da minha mente perturbada. Sinto o calor da xícara aquecer os dedos e permaneço de olhos fechados por mais uns incontáveis instantes. Respiro fundo, como quem aspira coragem, abro lentamente os olhos – que são violados pela luminosidade – e tomo um demorado gole de café. Olho a luz que vem da janela, me sinto ofuscado. Apoio a xícara sobre a mesa, caminho vagarosamente até o banheiro. Abro o chuveiro, deixo a água morna cair sobre mim, num incessante deslizar pelo corpo, da cabeça aos pés. A busca pelo relaxamento nos transforma...
Pego o roupão, visto. Meu corpo repete de forma mecânica o passo-a-passo feito rotineiramente nos dias: secar o corpo, vestir a roupa, calçar o sapato, pegar as chaves, sair de casa. Quando tomo a rua, olho descuidado ao meu redor e sigo em passos rígidos em direção a sabe Deus aonde. Não, não é parte de mim ser como estou. Passo por construções, lojas, ruas barulhentas, mas não tanto quando o barulho, o grito, o apelo da minha mente. Tudo em uma desordem sincronizada, latente e contínua. Nada faz sentido. Se dar, muitas vezes, é um pedido de socorro. É fazer aos outros aquilo que, no mais íntimo dos pensamentos e sentimentos, você quer que façam por você. É eternizar a si nos outros, mas é também querer em si algo que vem das pessoas. Reciprocidade é a palavra da vez. E é algo que não se pode ser exigido – sabendo disso, a frustração quando não se tem é devastadora.
[...]
Enfrentar seu próprio ser, na certeza de que algo não está bem é um exercício de guerra: monta-se estratégia, busca-se novas rotas, avança, recua, num risco constante de morte. De si, dos outros, das estratégias, de pensamentos, de sentimentos, de sensações. É, para muitos, o inferno de reviver sensações adormecidas, pelo medo, pela falta de coragem, pela inércia.
Caminho em direção ao abstrato, do que não se tem concretude nenhuma. Caminho no escuro dos profundos sentimentos que me tomam, num absurdo vazio, conturbado e barulhento, dentro de mim. É o inferno da consciência dizendo-me para fugir. De quê? De quem? De onde?
[...]
Volto a sentir a respiração, ofegante de tanto fugir. Tenho sede, mas não é de água; tenho fome, mas não é de comida...