Ao Assombro de indesejadas sombras

AO ASSOMBRO DE INDESEJADAS SOMBRAS

Tornando realidade o sonho, de barco foi para paragens distantes, conhecidas só pelo que a leitura lhe trazia. Chegou. Acordou do sonho para uma realidade diferente. Outras terras outras gentes, outro sentir, outro pensar. Cada dia uma realidade nova. Foram passando os dias, os anos. Trabalhou, sofreu. De dia trabalhava, de noite, enquanto o sono não chegava, pensava, lia, sonhava.

Foram se passando os anos. Um dia perdeu aquela a quem mais amava, e jamais tornaria a ver desde o dia triste da despedida. Nas noites de tristeza e desânimo, sentia-a junto de si, como anjo que guarda seu filho. Quantas vezes, quantas, as lágrimas correram livremente por sua face; o homem continuava a ser menino nesses momentos íntimos.

Dona Aventura o chamava, e partiu para terras ainda mais distantes. Dentro daquela imensidão conheceu outras gentes. Fez amigos. Viveu no interior profundo, de dia o sol por companhia, à noite o céu estrelado consolava-lhe a alma. Fez amigos, homens com quem trabalhou. Por vezes acompanhado, porém muito só. A pouco e pouco, os sonhos de menino, aqueles com que se deparava nos livros do tempo passado se tornavam realidade.

Por graça de Deus, favores do destino, aquilo que em criança lhe parecia sonho e fantasia, anteviu que era realidade possível. Passou em lugares que apenas conhecia de ouvir falar. Pisou o mesmo chão onde, cem anos antes, lutas ferozes se tinham travado. Conhecia os fatos. Agora via a realidade. Conheceu seres que nunca pensou ter conhecido.

Acocado sobe os calcanhares, nessa interminável floresta, noite em escura, ouviu histórias contadas pelo próprio sujeito que as tinha vivido.

Guardara como sagrada relíquia um livro já bem usado, cheinho de orelhas e páginas amarelecidas, oferecido por uma santa senhora, já velhinha. E esta contou-lhe histórias verdadeiras, o mundo real atrelado. Mistérios do viver, segredos do destino. Esta senhora, de nome Laura, dizia: anda cá meu rico filho. E o menino já contava por volta dos 28 anos. Quem poderá esquecer momentos desses? Ficam eternizados para todo o sempre, gravados a ferro e fogo dentro da alma.

Foram passando os anos. Durante muito tempo foi o ferro que o martelo batia em cima da bigorna. Vencendo pouco a pouco, criando amizades, umas sinceras e verdadeiras, outras nem tanto. Fortaleceu aquelas, as outras foi deixando os dias passarem. O tempo esvaiu-se, mas não esqueceu. Sofreu a inveja, a maledicência. Sempre e sempre, como alguém que se guarda das armadilhas do destino, sentiu força para ir mais além.

E deu graças à mãe por ter protegido o filho. As lágrimas no momento da despedida, por todo momento tinham sido luz a iluminar o caminho. Conversavam ao assombro de indesejadas sombras.

E segredava aos seus botões, entredentes: ó mãe, ó minha fonte de inspiração, dia menos, dia mais, quando sequer esperares, voltarás a receber o teu menino. Deixa o dorso curvado, os seios docemente arqueados e o peito como sempre o fizeste, pronto para a amamentação, livre à boca faminta, os bracinhos em torno do pescoço.

E ela sempre de braços abertos, convidativos: a doce jovem deusa que abraçava terna e pacientemente o mundo que se abrira ao nascedouro. Ele, ávido do que pouco conhecia, se aconchegava ao peito e torso nu para fruir o calor e calar a fome. Inesperadamente, dormiu, mordendo o seio túmido, como fora um terneiro desmamado. E nunca mais acordou...

Quo Vadis
Enviado por Quo Vadis em 05/06/2018
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