Outono assimilado
O brilho do outono
nas pedras negras da avenida principal.
Voltei no tempo.
Eis me aqui parado na esquina com um livro nas mãos.
Às vezes leio, às vezes não,
como antes.
Fico aqui esperando por um amigo que demora,
Me esqueço de que o passado é distante e ele com certeza vem a pé.
Alguém há de pensar que sou um pastor com este livro de capa preta e dura na mão.
Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis-
Até que seria uma boa pregação.
Mas haveriam de ter estômago e dentes fortes para orar com eles
Até Nietzsche diria.
Por exemplo:
Iniciação- para quem perdeu alguém querido:
" Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo"
Aos que tem tanta certeza- Um pouco de Tabacaria:
"Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. "
Aos que precisam de esperança- Leio o Guardador de rebanho.
"Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe."
Desperto dos meus pensamentos,
Alguém se aproxima, é o meu amigo que chegou.
Não sei de que estação do tempo.
Tem o cabelos brancos, rosto sulcado,
Mas ainda tem o mesmo brilho nos olhos.
Com as mãos nos meus ombros,
Como dois meninos voltando da escola,
contando segredos;
Descemos a avenida principal rumo a assistência social .
Vamos receber nosso crachá da terceira idade.
Referindo- se aos nossos cabelos brancos,
disse-me o meu sábio amigo:
—- Por que esconder uma coisa que já é púbica.
Sorrimos juntos.