Meu "muso" inspira-dor

A minha inspiração vem de mim, dos meus amigos, da fome, das doenças, das raivas e das vezes que já fui mandado catar "coquinhos".

Da água podre, das lamas vianenses em épocas chuvosas, nas baratas que fazem morada nos becos do Prenda, das barracas sem cerveja e das traquinices dos meus sobrinhos.

Das vezes que fico sozinho em casa e durmo acordado, das séries animadas japonesas com as quais me entretenho muito mais em relação às aulas na universidade, das chatices de quem me chateia e desapego de quem não quer mais saber de mim.

Inspiro-me em idiotices que leio e vejo a tempo inteiro, em alguns filmes de género cómico mas sem graça que faça rir, nas memórias danificadas dum computador portátil sem bateria e que clama por substituição, nas músicas que ouço e nas que ouvia, naquelas que ponho em modo "repeat" e noutras que já não me dizem mais nada.

Na preguiça e na repletância, na saúde e na morte vindoura, na vida assustadora e nos comícios dum Governo preguiçosos, que não se mostra capaz.

Sou inspirado pelas notícias nojentas e bajulativas de uma televisão que só favorece os interesses do partido na liderança, pelos músicos sem arte de musicar que enchem os canais radiofónicos, as mortes desnecessárias e na fuga de cadáveres das morgues.

Inspiro-me nas festas dos funerais e acampamentos nos cemitérios, nas bebidas sem gosto numa balada entre amigos, nos hinos da igreja, da comunhão cantando sobre amor congregada em pleno ódio, nas viagens despreparadas dum peregrino descrente, nas aulas pouco interactivas de certos doutores formados no exterior, nas propinas que escalam o gráfico e no topo das colinas da vida precária riem-se da nossa miséria.

Vejo arte na gravidez indesejada da filha única da esposa sem marido, no olhar preocupado do taxista que foi penteado por mais um polícia faminto, que alega não ter culpa de o país ser uma palhaçada.

Na comitiva dos gangsters desarmados que se põem frente aos disparos da necessidade, roubam e matam sem moral que lhes sustente os dias. Na coragem destes jovens revolucionários que não cruzaram os braços nem descansaram os pés face à má gerência e uso proibido do erário público. Nos desvios das riquezas dos pobres e nas constantes reprovações do estudante aplicado, na ingenuidade da beleza da rapariga sem cabeça, que se entrega ao salafrário corpo do ginásio, de mente cheia de nada e outras porcarias, a troco de uma simples boleia.

No eterno relacionamento que não durou nem um mês, nos cortes de energia eléctrica e água potável provocados por quem deveria ser o salvador da cidade, na delinquência dos bairros mais apertados e na poluição sonora produzida pela casa ao lado.

Ganho inspiração, ainda, com os gritos nocturnos, a harmonia lamuriosa, os agradecimentos do falso amigo e da decepção causada por quem tanto se confiou.

Inspira-me ver o engarrafamento matinal e a escuridão nas estradas que gozam de incontáveis postes de iluminação. Dá-me pois graça saber que o deus que promete uma nova vida é o mesmo que mata, que os nossos projectos são lixo e que os nossos sonhos não existem mais.

O meu muso são os tiros de madrugada e o amanhã que palpita fuga. A alvorada atrasada e o morrer do sol poente em plena manhã. Fico agitado quando me falam em unidade nacional, pois a gente que promete lutar ao nosso lado é a mesma que nos trai.

Inspiro-me nas demolições que derrubam vidas como cumprimento de missão, como juras de confiança e fidelidade massiva ao alá senhor com infinitos guardas, promovem choros que ninguém consegue calar e ainda fazem mais disparos à queima-roupa: atingem miudos inocentes pela cabeça e deixam adultos morrerem de ataques cardíacos.

Sinceramente...

Não sou poeta nem escritor. Sou apenas pó e escrevo dor, porque mesmo que haja motivos para festejar e viver a vida alegre, não sou cego o bastante para não ver o quão abismal o final do fim será.

Widralino
Enviado por Widralino em 18/04/2018
Código do texto: T6311799
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