ENTRE O FEIJÃO E O SONHO

De qualquer ponto que eu inicie um relato da minha história com a palavra escrita, esbarrarei no feijão e no sonho.

Foi só na terceira série aos nove anos que fui apresentado ao autor Orígenes Lessa. Quando a professora Vanda fez um resumo oral nos contando do que se tratava a obra, eu nunca mais fui o mesmo. Percebi que meu passado estava ali, logo no título, e também meu futuro.

Até então, para narrar em retrospectiva, eu estava encantado com as ciências e fazia experimentos em casa misturando água e óleo, areia e pedra, folhas de todas as cores no álcool para ver a tintura na mistura. E colecionava tipos de rochas porque tinha me apaixonado pela Geologia. Com O FEIJÃO E O SONHO, vi descortinado o universo de uma nova ciência: a Literatura.

Preciso ser honesto, eu não li o livro de Orígenes Lessa e pretendo nunca ler. O feijão é o sonho será sempre uma obra que conservará o mistério que vou lhes contar. Eu sentia que não podia me encontrar numa história contada por uma pessoa que eu não conhecia e que, mesmo assim, “sabia tudo de mim”. Como o escritor conhecia minha história e as dificuldades enfrentadas pelos meus pais presentes no embate entre ganhar a vida e a fuga constante para os sonho, para o ideal inatingível? Que ousadia, o autor ousou me expor...

Naquela época os nomes das coisas eram outros. Redação era composição; Biologia e Geologia, ciências. E História era matéria ainda confundida com estória, acho que um erro justificado na tentativa de deixar o CAMINHO da leitura SUAVE e meter em nossa cabeça uma diferenciação que sei hoje não existir. Aquele livro que eu não li ainda é a minha história, sei que mistérios existem e eu os prezo. Pressinto, como se ainda fosse criança, que um livro pode guardar a humanidade inteira. Aquele livro eu não li, mas desde então não parei de ler e me perdi na conta dos universos que desvendei lendo.

Mas houve um momento em que eu não sabia ler, e nem queria.

Eu não queria ler palavras, isso era coisa de adulto e eu desconfiava dos adultos. Veja bem, eu fui amado em casa e todos liam, na missa principalmente. Minha mãe foi professora num grupo escolar em Minas. Meu irmão mais velho estava ‘destinado’ a ser advogado... Nesse tempo a oralidade me tomava por completo, com o tempo a gente desaprende a ouvir. Ir para a escola foi traumático, eu não queria me socializar e briguei com minha irmã no portão alguns dias. Até que entrei, e aos poucos fui seduzido.

Seduzido primeiro pelas massinhas de cera coloridas, depois pelas pipocas grudadas nos vestidos das meninas que dançavam a festa junina. O deslumbre veio mesmo com a encenação da paixão de Cristo ensaiado pelo pessoal do Ginásio. Eles liam palavras num texto e depois repetiam as falas tiradas do papel – tudo era mágico, e eu resolvi: queria aprender aquilo.

Nas missas, ao lado dos meus pais e irmãos (tínhamos esse hábito), eu lia o folheto e cantava os hinos. A professora Berenice e depois a Dona Vera, da primeira e da segunda séries do colégio São Benedito em Uberaba, viam. Depois, nas aulas, elas queriam que eu participasse das atividades comemorativas. E lá estava eu no pátio recitando, as vezes dançando, e cantando no dias das mães EU TENHO TANTO PRA LHE FALAR, MAS COM PALAVRAS NÃO SEI DIZER.

Enquanto escrevo esse relato sobre a minha intimidade com a escrita, rememoro. São memórias afetivas que não explicam quem sou e não desvendam nem o feijão nem o sonho - mas são memórias que alinham uma coisa e outra: a fome e a arte.

Eu ainda poderia dizer tanto, com palavras; poderia contar da minha ideia, original naquele contexto de infância, de escrever tudo o que ia acontecer nas viagens para Minas. Eu tinha sete anos, não sabia que o nome disse era ‘crônica de viagem’ mas não podia deixar de viver para escrever e por isso o projeto nunca fora realizado. Cheguei a comprar uma caderneta na venda em que tínhamos crédito. Comprei lápis e comprei borracha. Acho que eu queria traduzir em palavras, aqueles códigos secretos recém-descobertos, o sonho.

Eu fui um menino que se perdeu em devaneios, e, à medida que cresceu, dedicou-se a morder nas bordas do mundo os seus sonhos e a trabalhar arduamente para ganhar a vida.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 14/04/2018
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