O que se é

As memórias flácidas que o visitam,

O fazem, sempre, hesitantes.

O pavor oriundo do algoz estrangeiro,

Já há muito as instruiu à discrição.

Ao aproximar-se do decadente leito,

Retiram, do moribundo, a coberta hipócrita;

Na qual este gastara o afã de dias;

Para enfim revelar o débil ente,

Que ali, agora, impera surdo.

Falar-lhe? Inútil. Soberano, ele, é.

Mas, sobre o que reina, tal criatura?

Criatura? Não. Não? Não o era.

No início, era, ele, um espírito:

O paladino das virtudes essenciais.

Contudo, ciência, ele, tinha da torpeza.

Por isso, pouco bastou para irrisão:

De repente, era um corpo torto;

Um torto no corpo; um ser corpo.

Tudo se resumia, então, a imagem:

A sua imagem; a sua frágil mortalha.

Na posse desse invólucro perecível,

Ele descobriu-se mestre de si:

Criatura sua. Espelho seu. Refém do eu.

Refém? Sim. Sim? Sim, agora o era.

Porém, tu podes indagar, como.

Como, um imperador torna-se refém?

Ou, como um refém, faz-se imperador?

Resposta, simples não escolhestes,

Entretanto, creio que não poderias,

Deixar passar tal flagrante loucura:

Um espírito exaurido pelo corpo.

Um corpo devastado pelo espírito.

Uma vontade que alimenta o corpo.

O corpo que alimenta o domínio.

Um domínio que desfaz o espírito.

Loucura? Sim. Não. Talvez...

Tens aí tua ignóbil resposta.

Rodrigo Leme de Oliveira
Enviado por Rodrigo Leme de Oliveira em 07/04/2018
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