Ex Amizade Existe?
A planta cresce nos lugares mais inóspitos. E com isto nos uma grande lição. A lição do despojamento, a lição do desinteresse, a lição de quase nada exigir do outro para existir plenamente. Mas tem que haver uma cumplicidade extrema entre a planta e um substrato qualquer, por mais árido que seja, este terá sempre que contribuir com algo , de alguma forma. A base firme para a planta desenvolver-se, um pouco de ar para as raízes absorverem, um pouco de umidade para que sua seiva circule, e nutrientes que podem ser aéreos ou subterrâneos, finalmente tem que haver luz. A luz que irradia e se transforma, de um ser para outro. Do substrato a planta e da planta a este.
Cheguei a pensar esta questão em relação ao que seria uma amizade. E a imaginei assim:
Queria que tua amizade fosse de uma cor quente. Imaginava a amizade plena e com tal cumplicidade que tudo que nos acontecesse tocaria uma a outra. Não queria morna, nem fria. Uma amizade se for amizade mesmo não merece frieza, indiferença. Amizade lembra amizade e só. Quer sempre dar um bom dia, dá uma notícia. De alguma forma encontrar um meio, ainda que virtual de estar perto.
Sentir-te amiga e tantas vezes te dar mostras disto. Sentir a tua distância. Sentires a minha distância. Entender os teus momentos e as tuas faltas, ainda que comigo, o teu momento delicado, custoso, falta tempo para tudo. A tua juventude exigente, carente. Mas falta alguma coisa que não te deixa aquecer o teu coração.
Falta um bom dia, mesmo que seja só para dar. Falta um contato, mesmo que não tenha nada para falar.
Viver cuidadosamente afastada, não te acrescenta. E se não sou eu a quebrar o gelo, não sei se chegaríamos a algum lugar. É uma maneira muito estranha de ser.
Queria mesmo que abrandasses um pouco. Não tivesses tanta dureza na alma, fosses dura quando preciso, para enfrentar tudo e conservasses um jeito dócil de lidar com os afetos.
Tu descuidas demais. Sinto, mas o argumento é o mesmo, é vítima, é carência, própria da idade, mas não é. Eu sei que não é. Não és dependente psicológica de ninguém.Tenho antenas que captam com muita facilidade os desafetos. E não sei como lidar com eles. Estranho demais.
Acho que todos temos nossas maneiras de ser. E esta tua maneira de ser é própria das pessoas que sofreram muito. Mas isto tem solução. Não precisamos endurecer o coração por sermos sofridos. Temos que nos entregar aos afetos.
Um afeto é descrito muito bem no inglês: feeling. Porque usam para tudo do clima a relação. A sensação, a atitude, os afetos desde antes e depois de ser afeto propriamente. Uma linha tênue, que se consagra na via do sentimento.
Isto é de uma delicadeza extrema. Merece ser vivido intensamente. Acho isso originalmente primordial no ser humano. O rugido vem depois.
Mesmo porque somos todos límbicos e erótica é a alma.
Assim o ser humano para ser mesmo humano tem que ter a rusticidade, a força do animal. E isto tem que estar em equilíbrio para sermos felizes. Gosto de me abandonar a candura da vida. As meiguices dos momentos. Ao ridículo de estar simples e simplesmente ser simples. Despojada do orgulho, para senti-lo por último, quando for inevitável: orgulho de si mesmo, orgulho da família, orgulho de uma amizade, orgulho da profissão, orgulhos que dignificam a forma de ser humano.
É uma sensação maravilhosa. Não se preocupar em não dar afeto por não saber como será recebido. Isto não interessa, temos que dar por primeiro. Mas uma vez dado, se não for aceito não podemos insistir. Afinal a liberdade é sagrada, até a de não receber.
In: 'Ex amizade existe?' Prosa de Ibernise.
Barcelos/Portugal 22MAI2016